[Comentário meu] Este artigo de Carlos Melo traz pontos importantes da discussão política sobre os governos no Brasil. Algumas questões levantadas encontram-se refletidas na crise política do pós-manifestações de junho. Há, entretanto, que se fazer uma ressalva: o texto foi publicado em abril, portanto, possivelmente escrito em março de 2013, quando nenhuma bola de cristal poderia prever uma situação social como a dos protestos de Junho. O interesse do texto permanece justamente por apontar o esvaziamento da Política como elemento de uma crise latente. Em outros pontos, pode-se discordar: quando trata da questão de investimentos e infraestrutura, não dá para saber se o autor levou em conta os enfrentamentos envolvendo a MP dos Portos e os contratos das empresas de energia elétrica. A resolução da questão dos portos foi posterior à publicação do artigo. Mas a questão do setor elétrico é anterior e, dessa forma, foi mesmo negligenciada pela análise. Também é absolutamente secundarizada a questão da taxa de juros, como se ela dissesse respeito simplesmente a estimular ou não o consumo. Enfim, permanece o interesse pela questão política: a análise de que os sinais de esgotamento apontam para a urgência da Reforma Política, bem como a crítica da tecnocracia como ineficaz para fazer frente a esta urgência.
por Carlos Melo, da Revista Interesse Nacional
O ciclo histórico de Dilma Rousseff não está completo: há tempo de mandato e espaço suficiente para alterar a visão do presente. Seu governo ainda será o que as circunstâncias permitirem e a política souber forjar. Logo, esta análise é, naturalmente, limitada, e o futuro poderá desdizê-la. E seria mesmo positivo que o fizesse. A vantagem do pessimismo é que vale a pena estar errado.
Mas, de um ponto de vista objetivo, até aqui, o governo Dilma realizou pouco e aguarda- se o momento de seu despertar. As incongruências do presente se originam no passado. No processo, estão as chaves explicativas de sua natureza estrutural.
É necessário, então, compreender esse processo para que se percebam desafios, impasses e limites do governo em curso. Um processo longo, de transformação do Brasil, que começa lá atrás, nos tempos de Fernando Henrique (FHC) e Lula, nas escolhas do passado que geram efeitos de longo prazo e ecos que ainda ressoam.
Para isto, é necessário superar a cegueira da euforia e soltar as amarras do preconceito. Veremos que nesta tentativa de explicação, pelo menos como alerta, muito do que se revela vai além do governo e implica um grande problema do país.
Este artigo pretende explicar o governo Dilma, mas também compreender a crise mais geral que vivemos. Sem julgar, busca aprofundar um diagnóstico. Se injustiças foram cometidas, elas são menores do que a vontade de que tudo se reverta e que o Brasil possa reencontrar os caminhos de seu desafio histórico.
1. Desafios históricos: 16 anos de ouro
Todo governo tem seu desafio histórico. Alguns mais dramáticos, outros menos perceptíveis, porque as circunstâncias não revelam tantas angústias. Dilma Rousseff assumiu o governo em condições menos dramáticas que seus antecessores. Todavia, seus desafios também estavam postos. Para compreendê-los, voltemos ao processo de transformação do país, levado a cabo por Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.
Para além do Fla-Flu que se tornou a política brasileira, o fato é que ao fim de quatro mandatos presidenciais, o Brasil promoveu uma interessante síntese, e graves problemas foram superados. Em primeiro lugar, concluiu-se delicada transição política. Em 1995, a memória do regime militar era viva. FHC assumia um país ainda ressentido com o impeachment de Fernando Collor de Mello. Oito anos depois, o ministro da Defesa era civil, os direitos humanos se fortaleciam, a normalidade eleitoral se fixava, a alternância de poder se dava com a eleição de Lula. Em oito anos mais, uma mulher, ex-guerrilheira, seria eleita. Alternância e diversidade: é um Brasil incomparável com seu passado.
Em segundo lugar, são marcantes os avanços econômicos: a inflação, que desorganizava a economia e alargava a desigualdade social, foi controlada. Econômica e socialmente, o Plano Real significou a profunda modernização do país. Iniciou um processo de distribuição de renda, redefiniu o papel e o tamanho do Estado, fez a mais decidida abertura comercial, até então.
Com FHC, houve inegável aperfeiçoamento institucional: foram criadas as Agências de Regulação, mecanismos para orientação e incentivo do mercado, foi estabelecido o imperativo da responsabilidade fiscal. Some-se a isto, a universalização do acesso ao ensino fundamental, e o país começou a ser outro.
A importância de Lula tampouco pode ser ignorada. Em primeiro lugar, porque sua moderação pôs fim ao “risco PT” – uma histeria apenas parcialmente justificada que animava a vida de operadores de mercado e trazia intranquilidade e indecisão, retraindo investimentos. Em segundo lugar, a continuidade do processo iniciado por Fernando Henrique não pode ser rebaixada à “usurpação”. A decisão não apenas foi p ragmática, mas corajosa.
A começar, porque a eleição de 2002 fora “mudancis ta”, e o eleitorado sinalizara cansaço com os tucanos. Persistir na mesma linha seria frus trar expectativas populares e populistas, relevar um basismo atávico e enfrentar radicais. Era, claro, pos sível fazer diferente e piorar tudo terrivelmente. Isto não ocorreu. É estranho, mas há críticos que parecem condená-lo por ter agido corretamente.
Num país como o Brasil e na América Latina, os sensos de realidade e moderação devem ser celebrados como qualidades, e não como defeitos. Não foi fácil desdizer o que reverberava dos palanques havia anos. Realismo político e pragmatismo. Se alguma crítica deve ser feita, será à interrupção do aperfeiçoamento institucional, sobretudo, no controverso entendimento das Agências de Regulação.
Todavia, avaliemos pelo saldo: Lula avançou numa agenda social que circunstâncias fiscais anteriores não permitiam – e a ideologia de setores do governo de FHC descartava categoricamente. De algum modo, Lula buscou a estabilidade com crescimento e distribuição: mantendo cautela macroeconômica, utilizou instrumentos que, em anos anteriores – peremptória, às vezes, sectariamente –, seriam descartados por implicar “custos fiscais” e riscos ao controle inflacionário.
Goste-se ou não, medidas como o Bolsa Família, o Prouni ou as cotas raciais, somadas à estabilidade da moeda, foram relevantes no conjunto das transformações históricas.
Os esforços e as realizações dos dois presidentes devem ser reconhecidos, não apenas per se, mas pela síntese que realizaram. Houve virtù diante da fortuna que coube a cada um.
Claro, o Brasil se transformava até porque também o mundo mudava vertiginosamente com tecnologia, revolução nas telecomunicações e globalização. O capitalismo informacional – na expressão de Manuel Castells – ou a lancinante circulação de capitais, tudo isto empurrava o país na direção de uma economia e de uma sociedade dinâmicas, voltadas para o futuro.
Ao fim e ao cabo, a estabilidade monetária e o crescimento econômico transformaram-se em valores sociais e políticos. Impedir a volta da inflação, manter o emprego e sustentar a inclusão social e o consumo passaram a ser imperativos categóricos da política nacional.
Considerando nossa jovem democracia, não foi fácil, não foi pouco e foi rápido. Todavia, é um projeto inacabado que exige continuidade e aprofundamento. O desenvolvimento e a inclusão social despertaram a necessidade de mais investimento, mais produção, mais consumo, mais escola e qualificação, melhor ambiente de negócios, instituições mais robustas. Um círculo virtuoso se for alimentado; perverso, se interrompido.
Os mecanismos utilizados por FHC e Lula já não bastavam. Juros, câmbio, superávits, políticas distributivistas, incentivos fiscais e crédito são ferramentas importantes, mas insuficientes. É necessário eliminar gargalos: a infraestrutura precária e insuficiente, insegurança jurídica, legislações arcaicas, mentalidades antigas. É preciso melhorar a qualificação do trabalhador. Supor manter o consumo sem garantir a produção é um erro crasso.
Desse modo, a tarefa de Dilma Rousseff seria dar continuidade à transformação: liberar o fluxo do desenvolvimento, sustentável, sem retorno à inflação. Fazê-lo com inclusão social e aperfeiçoamento institucional. Eis seu desafio histórico. A questão que cabe discutir é se Dilma tem cumprido a contento este papel.
2. A crise da política e os esgotamentos de instrumentos
O país se modernizou, mas está longe de ser plenamente moderno. Muito ficou pelo caminho, e novas iniciativas são indispensáveis. Chegou o tempo em que obstáculos estruturais precisam ser removidos, o que compreende conflitos de interesses ainda mais profundos. E quando se vislumbra o conflito, chega-se ao nervo da política.
Mas, se a economia e a sociedade se modernizaram, o mesmo não ocorreu com a política. Dada a emergência das questões dos anos 1990, a transformação do sistema político tornou-se