por Igor Grabois, no Viomundo
A ditadura militar acabou oficialmente há vinte e oito anos. No entanto, as Forças Armadas, em particular o Exército, permanecem como árbitros da política nacional. Nas jornadas de junho não foram poucas as referências ao retorno dos militares ao poder. E, em uma expectativa muda, vários analistas que acompanham a conjuntura esperaram uma posição dos militares nos acontecimentos.
Parte da estrutura do estado, sendo seus membros funcionários públicos e possuidores de formação educacional patrocinada pelo Estado, o comportamento histórico dos militares é de arbitragem da vida política nacional. Em 64, rasgaram a constituição que juraram defender. Promoveram inúmeros golpes de estado. A questão militar, desde os fins do império, assombra a vida política nacional e não é enfrentada pela sociedade civil.
As questões de defesa e militares são pouco debatidas no parlamento. Nas eleições, as questões de defesa não são mencionadas. Existem poucos trabalhos acadêmicos sérios. Mesmo a criação do Ministério da Defesa em 1999 não despertou maior atenção sobre o tema.
Em 2008, o governo federal elaborou a Estratégia Nacional de Defesa. Antes, em 2005, houve a atualização da Política Nacional de defesa. Deveriam ser marcos da elaboração da política militar pelo governo civil. Ambos os documentos foram atualizados em 2012 e serão analisados na continuação deste artigo. A elaboração da Política e da Estratégia Nacionais da Defesa foi feita no âmbito do Ministério da Defesa, traduzindo as aspirações da corporação militar.
A Constituição de 88 manteve, em uma formulação negociada com os comandos das Forças Armados, a possibilidade de intervenção dos militares na vida civil. Segundo o art. 142, cabe às forças armadas a defesa da pátria, a defesa dos poderes constitucionais e, a pedido de um deles, a garantia da lei e da ordem. Nesta zona cinzenta, sem pedido formal de nenhum poder, o Exército executou “operação GLO” no Complexo do Alemão por mais de dois anos.
O papel na vida pública civil não se resume ao previsto no art.142 da CF. As Forças Armadas, por exemplo, têm, por lei, poder de polícia na faixa de fronteira. As operações Ágata, de monitoramento de fronteiras, envolvendo as três forças e polícia federal, receita, IBAMA, polícias estaduais, já se encontra na sua sétima edição.
A Marinha é no Brasil a Autoridade Marítima e é responsável por elaborar a política marítima nacional. Exerce as funções de polícia marítima, realizando as tarefas de inspeção naval, salvaguarda da segurança aquaviária e do meio ambiente.
Regula o ensino profissional marítimo, forma os oficiais da marinha mercante e habilita os navegadores esportivos. Licencia toda e qualquer embarcação, seja fluvial ou marítima. Na Argentina, em comparação, essas funções são da Prefectura Naval. Nos EUA, na Itália, na Noruega, as tarefas de polícia e fiscalização marítimas são da guarda costeira.
A Força Aérea faz o controle do tráfego aéreo, a navegação aérea e a prevenção e investigação dos acidentes aeronáuticos, sejam da aviação civil ou militar. Até 2005, a regulação da aviação civil era feita pela FAB, atribuição atual da Anac.
O Exército faz a fiscalização dos produtos controlados, armamentos e explosivos de uso civil. Controla e credencia os colecionadores de armas e o tiro esportivo. Mais significativa é a existência da Inspetoria Geral das Polícias Militares, comandada por um general de brigada e responsável por controlar o efetivo e o armamento das polícias. As polícias e os corpos de bombeiros militares estaduais são forças auxiliares das forças armadas. A militarização das polícias é reforçada pelo controle exercido pelo exército.
As forças armadas se fazem presentes no cotidiano em diversas operações subsidiárias. O Exército distribui água no semi-árido nordestino. Faz obras públicas, como trechos da Transposição do Rio São Francisco, duplicação de estradas, obras do aeroporto de Guarulhos.
A Marinha possui navios de assistência hospitalar, atendendo na Amazônia e no Pantanal. A FAB transporta autoridades (possui uma unidade só para nessa função, o Grupo de Transporte Especial), urnas eletrônicas nas eleições, mala diplomática e carga para o governo federal. Sem contar a ação em catástrofes e desastres naturais.
As operações subsidiárias, incluindo as de garantia da lei e da ordem, se tornam o objetivo das forças armadas e, conseqüentemente, o móvel da intervenção na vida civil. As Forças Armadas cumprem papel da guarda nacional e há uma intervenção militar preocupante nas questões de segurança pública.
A própria discussão doutrinária no Exército tem privilegiado a intervenção nos assuntos internos em detrimento das funções de defesa nacional. As notas de coordenação doutrinária mais recentes ressaltam operações de “amplo espectro”,ou seja, “pacificação”, operações GLO, atendimento a calamidades, e operações “interagências”, com entidades civis governamentais e não-governamentais, em monitoramento de fronteiras e segurança de grandes eventos.
Há um clamor pela intervenção das forças armadas na segurança pública, principalmente por parte de governadores de estados com sérios problemas de segurança.
A incapacidade e a corrupção das polícias estaduais são usadas como justificativa da intervenção militar. O risco óbvio é a intervenção militar se tornar permanente com o componente de repressão política e aos movimentos sociais.
A doutrina do “amplo espectro” mantém a figura do “inimigo interno” da época da ditadura, de maneira sutil e teorizada.
Na Copa das Confederações e na Jornada Mundial da Juventude, o ator de maior destaque foi o exército, coordenando os demais órgãos – Polícia Federal, Polícia Rodoviária, Defesa Civil, polícias estaduais, guardas municipais, CET’s – e mantendo tropas como reserva para a repressão às manifestações.
O conceito do “inimigo interno” se mantém pelo fato das corporações militares não terem abandonado o culto à ditadura e ao histórico de intervenções na vida política. O golpe de 64 é comemorado nos quartéis nos dias 31 de março, com ordens do dia acerca da “Revolução Democrática” ainda hoje.
Presidentes-ditadores e expoentes da ditadura militar são homenageados constantemente.
A Escola de Comando e Estado Maior do Exército, a escola mais importante na formulação da doutrina, é a Escola Castelo Branco.
A 2ª Divisão do Exército, em São Paulo, é a Divisão Costa e Silva. Carrasco Azul Médici é patrono da turma de oficiais formados na Academia das Agulhas Negras em 2011, além de nomear o 3º Batalhão Logístico, em Bagé.
Walter Pires, ministro do Exército de Figueiredo e figura chave na execução do golpe de 64, nomeia o Centro de Instrução de Blindados, em Santa Maria. Rademaker, vice do Carrasco Azul, é nome de fragata na Marinha. Os exemplos são inúmeros.
A rejeição à Comissão da Verdade não se limita aos círculos da reserva, organizados nos clubes militares. Em 2010, o então Ministro da Defesa Jobim comprou a insatisfação dos comandantes militares em relação ao III Plano Nacional de Direitos Humanos.
Há uma sistemática recusa, por parte das Forças Armadas, em colaborar com a apuração efetiva dos crimes da ditadura. Sonega-se a abertura de arquivos. Há a alegação, comprovadamente falsa, que os arquivos teriam sido queimados. Os torturadores são defendidos com unhas e dentes. Alguns veteranos da repressão política dão palestras nas escolas militares e colaboram na formulação da doutrina.
Os militares fazem sua própria política. As autoridades civis apenas corroboram seus programas e planos. As visitas de comandantes e autoridades militares às Comissões de Defesa e Relações Exteriores da Câmara e do Senado se caracterizam pela ausência de questionamentos por parte dos parlamentares.
O ensino militar continua valorizando a ditadura e o intervencionismo, permanecendo ausentes a democracia e os direitos humanos. É reproduzida a ideologia do “inimigo interno” e a ideia do papel de árbitro da vida nacional exercido pelos militares.
A ditadura militar de vinte e um anos deixou marcas profundas no país. A tutela militar é uma das heranças mais significativas.
Para setores das classes dominantes, as Forças Armadas servem de reserva nos momentos de crise. Não faltam os áulicos e as vivandeiras de quartel.
Discutir o papel das forças armadas, superar a herança da ditadura, é tarefa fundamental para os setores que lutam por mudanças reais no Brasil.
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