segunda-feira, 11 de março de 2013

Saudade de Foucault


    Eu senti saudade da leitura de Michel Foucault por esses dias. O pensamento de Foucault, indissociável de seu estilo provocador, foi o que mais deixou marcas em minha própria formação. Ao ler um livro de Foucault, vamos tendo a sensação de que é um ato de coragem que se apresenta para nós, leitores.
    O início desse contato, seria inútil eu tentar reconstituí-lo detalhadamente agora. Mas essa sensação que acabo de dizer, óbviamente, não se deu imediatamente. As primeiras leituras foram de segunda mão: estudos de diversos campos que encontravam no filósofo francês um modo diferente de falar sobre relações de poder, sobre a noção de verdade, sobre o sexo e a sexualidade.
    Depois, veio a leitura de alguns trabalhos que não apenas utilizavam Foucault como uma ferramenta eventual, mas que se explicitavam como trabalhos foucaultianos, que de alguma maneira buscavam acompanhar seus rastros. Foi então que eu decidi, isso devia ser ainda no início de minha graduação, ler o primeiro volume de sua História da Sexualidade. Quero dizer: foi a primeira obra de Foucault que decidi ler por conta própria, sem que constasse das exigências de nenhuma obrigação acadêmica. Leitura que mais tarde eu refiz, desta vez num contexto mais institucionalizado, onde havia outros colegas que trabalhavam valendo-se de ideias foucaultianas. Mas neste momento anterior, foi uma leitura solitária. Para admiração de alguns e como pólvora para o desdém de outros, Foucault nos legou uma escrita bela. Desdém que podemos tomar conhecimento em críticas a seus trabalhos que veem neles um beletrismo que seria o sinal apenas de uma verborragia que não diz nada de novo. Qualquer um que se deu ao trabalho de ler Foucault, sabe que não está diante “apenas” de uma escrita bela, mas que se trata de uma obra consistente. Mas para aqueles que, além da inconsistência de ideias, não foram capazes de explorar as potencialidades da linguagem escrita, resta ainda a possibilidade de apontar para a bem trabalhada escrita de Foucault como a prova de que ela não passa disso: uma escrita bem trabalhada.
    De minha parte, estou entre aqueles que sempre se admiram da escrita de Foucault.
    Já havia tido contato, sem nenhuma sistematização, com algumas entrevistas do filósofo. O que também deixou marcas que viriam se conectar a outras. Como se sabe, a maior parte dessas entrevistas contém reflexões importantes, não só esclarecimentos sobre as obras publicadas mas apontamentos interessantes, que se tornaram fonte de investigação para novas gerações de estudiosos. Os cursos do Collège de France, com suas qualidades de apresentarem pesquisas originais ao mesmo tempo que dão acesso a um pensamento em movimento permanente, já que se trata da transcrição das aulas, foram leituras mais tardias. Aliás, as publicações deles foram tardias em relação ao restante dos trabalhos, algumas traduções tendo saído há pouco tempo no Brasil. Deles, a Hermenêutica do Sujeito, foi o último curso que eu lí na íntegra. O texto é bem acessível, o que não deve enganar: trata-se de empreendimento ousado que se articula a outros cursos e que, se levados a sério, tem o potencial não apenas de se tornar um marco na Filosofia enquanto disciplina, mas também de produzir mudanças na relação entre sujeito, conhecimento e espiritualidade.
    No contexto acadêmico, uma certa atitude me pareceu muito estranha: uma segmentação e um isolamento do pensamento que se apresentavam como dados da realidade. De modo que não era difícil ouvir algo assim: “se quiser estudar sexo, leia Foucault”. De fato, ao comentar o quanto havia me interessado pela leitura de Vigiar e Punir, uma vez eu ouvi a seguinte resposta de estranhamento: “Ah! Mas eu pensei que você só gostasse do Foucault da sexualidade”. Não é preciso ser nenhum Michel Foucault para se dar conta que este tipo de enquadramento é empobrecedor.
    A obra de Foucault, embora tenha sim um caráter original, não é fechada sobre si mesma. Sem querer realizar a tarefa impossível de, num breve comentário como este, fazer o levantamento de todos os seus diálogos, cito apenas que eles foram da teoria crítica à psicanálise, passando pela arte, pela sociologia e pelo marxismo. Não foi por um acaso que figuras como Louis Althusser e Nico Poulantzas se ocuparam da leitura e da crítica ao trabalho de Foucault.
    Tudo isso é componente daquela saudade que mencionei acima. Mas ao invés de pegar a saudade e me debruçar sobre algum texto já conhecido, busquei algo que eu ainda não tinha travado contato direto. Sabia que o primeiro trabalho de Foucault já problematizava o conhecimento sobre a loucura, que se esboçava ali a questão do saber que se adensou com estudos feitos na sequência, mas nunca tinha sentado para ler Doença Mental e Psicologia.
    Este texto de 1954, que ganhou nova edição (é bem possível que tenha sido uma edição “correta e diminuída” como agradava a Mario Quintana), surpreende por vários motivos. O filósofo que naquela altura tinha por volta de vinte e oito anos parece saber exatamente o que está fazendo. Embora, de partida, o texto já coloque sob suspeita o fato de doenças orgânicas e doenças mentais encontrarem-se sob as mesmas definições de patologia, esse movimento inicial tem um estilo aparentemente sufocante: vai-se descrevendo uma a uma as fases e categorias de doença mental, todos os déficits da personalidade doente, que as diversas psicologias conseguiram produzir até então. Até que um outro movimento nos coloca diante de um estilo cortante: é como se Foucault chamasse a psicologia a uma humildade que normalmente não lhe é própria e demonstrasse que estas categorias que se pretendem totalizantes em suas descrições são, em verdade, insuficientes. Insuficientes para entender como a personalidade do doente mental se estrutura, a despeito dos déficits; e insuficientes para determinar a própria origem da doença. Vemos este movimento do pensamento ganhar força em considerações como a seguinte, referindo-se à noção de evolução e regressão nas psicologias:

“No horizonte de todas estas análises, há, sem dúvida, temas explicativos que se situam por si mesmos nas fronteiras do mito: o mito, inicialmente, de uma certa substância psicológica ("libido", em Freud, "força psíquica", em Janet), que seria a matéria bruta da evolução, e que, progredindo no decorrer, do desenvolvimento individual e social,sofreria uma espécie de recaída, e voltaria, devido a doença, a seu estado anterior; o mito também de uma identidade entre o doente, o primitivo e a criança, mito através do qual se tranqüiliza a consciência escandalizada diante da doença mental, e consolida-se a consciência presa a seus preconceitos culturais. Destes dois mitos, o primeiro, porque científico, logo abandonado (de Janet, retém-se a análise das condutas, e não a interpretação pela força psicológica: os psicanalistas rejeitam cada vez mais a noção bio-psicológica de libido); o outro, pelo contrário, ético, porque justifica mais do que explica, permanece vivo ainda” (Foucault, 1975, p. 23)

    Além dessa análise crítica, chama a atenção que um estudioso de vinte e oito anos já tivesse um domínio tão consistente das diversas psicologias e da psicanálise, em especial. E na primeira parte dete trabalho, a que é dedicada às dimensões psicológicas da doença mental, é isso que Foucault demonstra. Por exemplo, no domínio que ele expressa do movimento que há no interior da obra de Freud que o levou de uma teorização biológica do psiquismo, marcada pela admiração a Darwin e expressa no problema do instinto, para uma inflexão sobre a história individual do doente, originando a teoria sobre o inconsciente e passando a problematizar a noção de angústia, este sentimento que se encontra no cerne do conflito e com o qual a psicanálise irá se desenvolver.
    Quando digo que chama a atenção este domínio quero dizer que chama a atenção pelo fato de que ele estava certo em sua ousadia. Não sou psicanalista, mas realizei algumas leituras que me permitem reconhecer esta característica deste trabalho de Foucault. Cito duas recentes: a primeira, do historiador Christopher Lasch, para quem os conceitos psicanalíticos são ferramentas para pensar as formações históricas da subjetividade no século XX, em especial no período pós segunda guerra mundial. Importam para Lasch as teorizações freudianas sobre o eu e, sobretudo, a reflexão sobre o narcisismo e sua dimensão cultural.A segunda consiste no livro mais recente da psicanalista Maria Rita Kehl, O tempo e o cão, no qual se procura definir o status da depressão no interior da psicanálise. Justamente por perceber que o conceito de melancolia sofreu uma inflexão a partir do trabalho de Freud e que o conceito de distúrbios maníaco-depressivos ficou a cargo das definições cada vez mais imprecisas da psiquiatria, Kehl procura reposicionar a questão da depressão no interior da psicanálise. Para isso, a psicanalista alia qualidades que lhe permitem mirar no horizonte a subjetividade de nossa época: conhecimento histórico, diálogos importantes com a filosofia e com a teoria social, em especial um cuidado com o problema do tempo e da experiência a partir de Walter Benjamin, tudo isso somado a uma formação consistente da teoria psicanalítica. Ainda que critique o modo pelo qual a análise de Freud restringiu algumas questões ao domínio da vida privada, praticamente negligenciando a questão do laço social, é na gramática freudiana que seu trabalho se desenvolve. E se desenvolve buscando explicitar a diferença entre a melancolia e a depressão, demonstrando que o lugar da depressão nas estruturas da personalidade doente é entre as neuroses, mas um lugar anterior àquele que tradicionalmente se conhece. E é de forma cuidadosa que Kehl vai posicionando as inflexões na obra de Freud: o conceito biológico de libido e, posteriormente, a análise da angustia e dos mecanismos de defesa. Enfim, um trabalho de maturidade que, para avançar, busca salvaguardar a teoria psicanalítica.
    Não se pode afirmar que Foucault busque, ao contrário, invalidar a psicanálise. Mas também não é próprio de seu trabalho a busca de salvaguardas para ela, já que não é nela que ele avança. E por não ter esta relação de filiação com a teoria psicanalítica é que se destaca a consistência de sua leitura da psicanálise. Uma leitura que, como acabo de comparar, exige cuidado e precisão desde que se pretenda bem sucedida. E que exige ainda mais quando se coloca no campo da crítica, desde que esta crítica queira-se como consequente. Este trabalho inicial de Foucault já deixa claro uma capacidade de criar um ponto de vista alternativo aos problemas que se propõe, e criar de modo consistente. Lembro, por fim, que neste Doença Mental e Psicologia o que está em questão não é apenas a psicanálise, que é colocada em parte do trabalho. Apenas fiz estes parênteses com a psicanálise para destacar o compromisso de Foucault com uma análise crítica e histórica. Uma análise capaz de direcionar o problema não mais de uma suposta loucura que nada sabe sobre si mesma mas da relação de uma sociedade com a razão e com a desrazão. Problema amplo que abarca também as diversas psicologias e a medicina psiquiátrica. E muito além. Encerro este comentário deixando as últimas palavras desta interessante obra:

“Há uma boa razão para que a psicologia não possa jamais dominar a loucura; é que ela só foi possível no nosso mundo uma vez a loucura dominada e já excluída do drama. E quando, através de clarões e gritos, ela reaparece como em Nerval ou Artaud, em Nietzsche ou Roussel, é a psicologia que se cala e permanece sem palavras diante desta linguagem que toma o sentido das suas palavras desta dilaceração trágica e desta liberdade de que somente a existência dos "psicólogos" sanciona para o homem contemporâneo o pesado esquecimento” (Idem, p. 68).

Foucault refere-se à obra de Hieronymus Bosch (1450 - 1516) como exemplo do ponto de vista do final da Idade Média sobre a Loucura: assumindo uma linguagem e circulando no cotidiano juntamente com outras imagens. Sobre o Jardim das Delícias, ele diz o seguinte: "não é a imagem simbólica e composta da loucura, nem a projeção espontânea de uma imaginação em delírio; é a percepção de um mundo suficientemente próximo e distante de si para ser aberto à absoluta diferença do Insano".