[Comentário meu] A entrevista do sociólogo Manuel Castells é interessante principalmente pela declaração que a fez ser menosprezada no Brasil: ele afirmou a diferença da reação de Dilma Rousseff em relação aos outros líderes mundiais que enfrentaram manifestações massivas organizadas pelas redes sociais: "ela é a primeira líder mundial que presta atenção, que ouve as demandas de pessoas nas ruas. Ela mostrou que é uma verdadeira democrata, mas ela está sendo esfaqueada pelas costas por políticos tradicionais". E, neste aspecto, não se trata de sociologismo superficial: Castells é considerado o principal estudioso das redes sociais e seu mais recente livro analisa justamente a série de manifestações articuladas pela internet nos últimos anos em todo mundo. Também analisa corretamente a miopia política da oposição partidária ao governo petista (sobre isso já escrevi algumas análises aqui no blog), tomando o exemplo das declarações de José Serra após as manifestações. Em outros pontos, a análise é muito genérica e não dá conta das contradições que surgiram no contexto dos protestos, bem como sua articulação com o contexto geopolítico da América Latina (colocados em outros textos desta série "questões emergentes): ele dá atenção basicamente à demanda por melhores serviços públicos que originou o movimento. Em todo caso, a leitura é interessante. Por fim, vale lembrar que Castells não tem proximidade com "intelectuais petistas" e nem mesmo é rotulado como intelectual de esquerda: pelo contrário, é amigo de Fernando Henrique Cardoso e sua recente visita ao Brasil foi justamente para um evento promovido pelo iFHC. Curiosamente, em sua última entrevista ao Roda Viva, FHC lembrou largamente a importância de Castells para a compreensão destes movimentos contemporâneos, mas não citou esta análise do sociólogo sobre o ineditismo da atitude da presidenta Dilma.
por Daniela Mendes
ISTOÉ - O sr. estava no Brasil quando ocorreram os primeiros protestos em São Paulo. Podia imaginar que eles tomariam essa proporção?
MANUEL CASTELLS - Ninguém podia. Mas o que eu imaginava, e pesquisei durante vários anos, é que a crise de legitimidade política e a capacidade de se comunicar através da internet e de dispositivos móveis levam à possibilidade de que surjam movimentos sociais espontâneos a qualquer momento e em qualquer lugar. Porque razões para indignação existem em todos os lugares.
ISTOÉ - O Brasil reduziu muito a desigualdade social nos últimos anos e tem pleno emprego. Como explicar tamanho descontentamento?
MANUEL CASTELLS - A juventude em São Paulo foi explícita: “Não é só sobre centavos, é sobre os nossos direitos.” É um grito de “basta!” contra a corrupção, arrogância, e às vezes a brutalidade dos políticos e sua polícia.
ISTOÉ - Faz sentido continuar nas ruas se os problemas da saúde e da educação não podem ser resolvidos rapidamente, como o das passagens de ônibus?
MANUEL CASTELLS - Em primeiro lugar, o movimento quer transporte gratuito, pois afirma que o direito à mobilidade é um direito universal. Os problemas de transporte que tornam a vida nas cidades uma desgraça são consequência da especulação imobiliária, que constrói o município irracionalmente, e de planejamento local ruim, por causa da subserviência dos prefeitos e suas equipes aos interesses do mercado imobiliário, não dos cidadãos. Além disso, por causa da mobilização, a presidenta Dilma Rousseff também está propondo novos investimentos em saúde e educação. Como leva muito tempo para obter resultados, é hora de começar rapidamente.
ISTOÉ - A presidenta Dilma agiu corretamente ao falar na tevê à nação, convocar reuniões com governadores, prefeitos e manifestantes para propor um pacto?
“As críticas de José Serra (às iniciativas de Dilma) são típicas da incompreensão dos políticos sobre o direito das pessoas de decidir” |
MANUEL CASTELLS - Com certeza, ela é a primeira líder mundial que presta atenção, que ouve as demandas de pessoas nas ruas. Ela mostrou que é uma verdadeira democrata, mas ela está sendo esfaqueada pelas costas por políticos tradicionais. As declarações de José Serra (o ex-governador tucano criticou as iniciativas anunciadas pela presidenta) são típicas de falta de prestação de contas dos políticos e da incompreensão deles sobre o direito das pessoas de decidir. Os cargos políticos não são de propriedade de políticos. Eles são pagos pelos cidadãos que os elegem. E os cidadãos vão se lembrar de quem disse o quê nesta crise quando a eleição chegar.
ISTOÉ - Como comparar o movimento brasileiro com os que ocorreram no resto do mundo?
MANUEL CASTELLS - Houve milhões de pessoas protestando dessa forma durante semanas e meses em países de todo o mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, mais de mil cidades foram ocupadas entre setembro de 2011 e março de 2012. A diferença no Brasil é que uma presidenta democrática como Dilma Rousseff e um punhado de políticos verdadeiramente democráticos, como Marina Silva, estão aceitando o direito dos cidadãos de se expressar fora dos canais burocráticos controlados. Esse é o verdadeiro significado do movimento brasileiro:
ele mostra que ainda há esperança de se reconectar instituições e cidadãos, se houver boa vontade de ambos os lados.
ISTOÉ - O que é determinante para o sucesso desses movimentos convocados pela internet?
MANUEL CASTELLS - Que as demandas ressoem para um grande número de pessoas, que não haja políticos envolvidos e que não haja líderes manipulando. Pessoas que se sentem fortes apoiam umas às outras como redes de indivíduos, não como massas que seguem qualquer bandeira. Cada um é seu próprio movimento. A brutalidade policial também ajuda a espalhar o movimento através de imagens na internet difundidas por telefones celulares.
ISTOÉ - Por que tantos protestos acabam em saques e depredações? Como evitar que marginais se aproveitem do movimento?
MANUEL CASTELLS - Há violência e vandalismo na sociedade. É impossível preveni-los, embora os movimentos em toda parte tentem controlá-los porque eles sabem que a violência é a força mais destrutiva de um movimento social. Às vezes, em alguns países, provocadores apoiados pela polícia criam a violência para deslegitimar o movimento.
ISTOÉ - Como a polícia deve agir?
MANUEL CASTELLS - Intervir de forma seletiva, com cuidado, profissionalmente, apenas contra os provocadores e os grupos violentos. Nunca, nunca disparar armas letais, e se conter para não bater indiscriminadamente em manifestantes pacíficos. A polícia é uma das razões pelas quais as pessoas protestam.
ISTOÉ - A ausência de líderes enfraquece o movimento?
MANUEL CASTELLS - Pelo contrário, este é o vigor do movimento. Todo mundo é o seu próprio líder.
ISTOÉ - Mas isso não inviabiliza a negociação com a elite política?
MANUEL CASTELLS - Não, a prova disso é que a presidenta Dilma Rousseff se reuniu com alguns representantes do movimento.
ISTOÉ - Qual é a grande força e a grande fraqueza desses movimentos?
MANUEL CASTELLS - A grande força é que eles são espontâneos, livres, festivos, é uma celebração da liberdade. A fraqueza não é deles, a fraqueza são a estupidez e a arrogância da classe política que é insensível às demandas autônomas de cidadãos.
ISTOÉ - No Brasil, partidos políticos foram banidos das manifestações e há quem enxergue nisso o perigo de um golpe. Faz sentido essa preocupação?
MANUEL CASTELLS - Não há perigo de um golpe de Estado. Os corruptos e antidemocráticos já estão no poder: eles são a classe política.
ISTOÉ - Como resolver a crise de representatividade da classe política?
MANUEL CASTELLS - Com reforma política, com uma Assembleia Constituinte e um referendo. A presidenta Dilma Rousseff está absolutamente certa, mas, nesse sentido, ela será destruída por sua própria base.
ISTOÉ - Essas manifestações articuladas através das redes sociais demandam uma nova forma de participação dos cidadãos nos processos de decisão do Estado? Qual?
MANUEL CASTELLS - Sim, esta é a nova forma de participação política emergente em toda parte. Analisei este mundo em meu livro mais recente.
ISTOÉ - O que há em comum entre os movimentos sociais contemporâneos?
MANUEL CASTELLS - Redes na internet, presença no espaço urbano, ausência de liderança, autonomia, ausência de temor, além de abrangência de toda a sociedade e não apenas um grupo. Em grande parte os movimentos são liderados pela juventude e estão à procura de uma nova democracia.
ISTOÉ - O movimento Occupy, nos EUA, foi derrotado pela chegada do inverno. Que legado deixou?
MANUEL CASTELLS - Deixou novos valores, uma nova consciência para a maioria dos americanos.
ISTOÉ - Os Indignados espanhóis conseguiram alguma vitória?
MANUEL CASTELLS - Muitas vitórias, especialmente em matéria de direito de hipoteca e despejos de habitação e uma nova compreensão completa da democracia na maioria da população.
ISTOÉ - Que paralelos o sr. vê entre o movimento turco e o brasileiro?
MANUEL CASTELLS - São muito similares. São igualmente poderosos, mas a Turquia tem um primeiro-ministro fundamentalista islâmico semifascista e o Brasil, uma presidenta verdadeiramente democrática. Isso faz toda a diferença.
ISTOÉ - Acredita que essa onda de protestos se espalhará para outros países da América Latina?
MANUEL CASTELLS - Há um movimento estudantil forte no Chile, e embriões surgindo na Colômbia, no México e no Uruguai.
ISTOÉ - Países que controlam a internet, como a China, estão livres dessas manifestações?
MANUEL CASTELLS - Não, isso é um erro da imprensa ocidental. Há muitas manifestações na China, também organizadas na internet, como a da cidade de Guangzhou (no sul do país), em janeiro passado, pela liberdade de imprensa (o editorial de um jornal foi censurado e isso motivou as primeiras manifestações pela liberdade de expressão na China em décadas. Pelo menos 12 pessoas foram detidas, acusadas de subversão).
ISTOÉ - Como o sr. vê o futuro?
MANUEL CASTELLS - Eu não gosto de falar sobre o futuro, mas acredito que ele será mais brilhante agora porque as sociedades estão despertando através desses movimentos sociais em rede.
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