Tem sido estranho, pra dizer o mínimo. Concordo com o testemunho do jornalista Rodrigo Vianna. O relato que ele publicou ontem nos informa de manifestantes que querem "mudar tudo", mas o tudo deles não tem a ver com mais democracia, com uma visão do transporte público como direito, com o repúdio à violência (muito pelo contrário). Foi o relato de alguém que presenciou uma parte dos acontecimentos (e ele próprio adverte que, apesar de muito preocupante, reconhece que seu relato é parcial). Agora, soma-se a este relato, o ponto de vista de Paulo Motoryn, militante do MPL. É outra pessoa que presenciou as manifestações e que expõe em seu relato os "perigos" que ele detectou. Tenta advertir, contra a apropriação conservadora, o seguinte:
"O grito dos jovens está longe de bradar contra os “mensaleiros”, contra a inflação, contra as políticas sociais de transferência de renda".
Ou seja, estamos falando de relatos não de pessoas que ficaram a mercê da cobertura telejornalística repleta de narrativas tendenciosas, que poderiam gerar uma preocupação exagerada com a conotação conservadora que os acontecimentos estão assumindo. Não estamos falando de pessoas que ficaram reféns da lógica do espetáculo. Estamos falando de pessoas que perceberam que, ao menos em São Paulo, há uma apropriação conservadora das mobilizações. Por parte daqueles que querem ver a inflação como vilã do momento, daqueles que são contrários às políticas de transferência de renda.
São Paulo tem um classe média contraditória, que se diz apolítica, mas vibra ante a possibilidade de ver um governo que "imponha respeito" e que, se possível, elimine o PT do mapa. Ontem eu ouvi relatos que expressam essa contradição: de pessoas que não apoiam o Passe Livre e nem mesmo concordam com a redução da tarifa, dizendo que condenavam esse tipo de manifestação, que consideravam que a demanda por passe livre é coisa de vagabundo, de gente que não quer trabalhar e tem tempo de sobra para estar na rua se manifestando. Onde está a contradição? Está no fato de que essas mesmas pessoas que não apoiam a causa do MPL tinham um "mas" preparado: "Mas o problema é esse! Aqui em São Paulo ninguém que eu converso assume ter votado nesse PT! Mas não sei o que acontece que eles tão sempre aí, há tanto tempo! Agora tá aí. Não são eles que gostavam de arruaça? Bem feito, estão pagando! Sabe, tá tudo muito errado! Alguma coisa tinha que acontecer!". Um outro lembra a ditadura. A fala continua: "Pois é, naquela época eles impunham respeito. Era muito melhor!".
Isto é o seguinte: é mentalidade conservadora tentando encontrar soluções para seus medos. Não apoia mobilização popular, vamos frisar. Não apoia mobilização popular, mas já que as coisas estão acontecendo, torce para que tudo isso pelo menos sirva para "alguma coisa acontecer". O alguma coisa da classe média paulistana não é "o outro mundo possível" do Fórum Social Mundial, locus de origem do MPL. Houve quem achasse a descrição de Marilena Chauí, da classe média paulistana (como fascista, violenta e ignorante) um exagero. Não é. Exagero seria achar que tais valores são exclusivos da classe média, o que não é verdade. Mas que estão fortemente presentes em grande parte dela, não há como negar.
O que está em questão é que entraram em cena, nas manifestações, sujeitos políticos que não estão preocupados com conquistas democráticas, muito menos que estão contrários à “onda conservadora” que preocupa a muitos. Isso está expresso na manifestação de ontem. O MPL não teve sua demanda atendida, mas conseguiu uma mudança no discurso do prefeito e respaldo no Conselho da Cidade. A depender dos interesses do MPL, os ataques à prefeitura ontem não se justificariam. A eles interessa manter a mobilização popular, mas erguer uma frente de guerra que inviabilize o canal aberto pela negociação seria um erro. Acontece que o MPL já não tem mais condições de se responsabilizar por manifestações como a de ontem.
Podemos concordar que democracia não se faz somente nas disputas eleitorais. Mas nossa última disputa nacional deixou lições a não serem esquecidas: um discurso moral direitista disposto a sair do subterrâneo; partidos políticos dispostos a endossar esse tipo de discurso se isso sinalizar para uma vitória nas urnas; uma sociedade divida em torno de visões distintas para os problemas do país. Muito se disse que o governo Dilma assumiu posições que apostavam na possibilidade de arrefecer tais divisões, de arrefecer os tensionamentos. Mas isso não aconteceu, ou melhor, não funcionou. Ou alguém acha que, ontem, a presidenta da república se deslocou de Brasília a São Paulo simplesmente para tomar um chá e saber como anda a saúde do companheiro Lula?
A atual onda de mobilizações, em sua origem, não tinha nada a ver com um “Fora Dilma!”. Estava muito mais próxima do “contra tudo que aí está”. Os problemas concretos que visavam eram (são) de responsabilidade de todos os governos (petista e tucano). Não permitia a praticamente nenhum partido ficar, de camarote, assistindo, aplaudindo e fazendo cálculos eleitorais. Mas essa situação mudou. Uma parte da sociedade que não ficou satisfeita com a vitória de Dilma Rousseff é alimentada diariamente com um discurso de ódio ao governo petista. Não é que antes não estivessem dispostos a bradar contra este governo. Mas veem agora, com outros setores da sociedade mobilizados, a possibilidade de tornarem-se maioritários, com autoridade para questionar a legitimidade da presidenta, de “tudo que aí está”, inclusive, fazendo circular uma petição de impeachment.
Há sinais de que esta mobilização já está bem distante daquela rapaziada cantada por Gonzaguinha, aquela “que sabe que é negro o coro da gente”.
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