segunda-feira, 29 de abril de 2013

Entrevista de Franklin Martins a Lino Bocchini, concedida em agosto de 2012


Para além do "Fala, Dilma!"



      A presidenta Dilma Rousseff precisa melhorar a comunicação de seu governo. Há dois anos, quando iniciou seu mandato, esta parecia ser uma questão relacionada à diferença de estilo pessoal entre Dilma e Lula: enquanto o ex-presidente falava à vontade e abusava de improvisos, principalmente em seu segundo mandato, a nova mandatária, além de se dedicar mais ao trabalho interno necessário ao início de governo, não se via tão à vontade para exibir seus dotes como oradora. Passado este tempo, ficou claro que o problema não é apenas uma diferença pessoal de estilos.
      Os grandes veículos de imprensa brasileiros dedicam especial atenção a este aspecto dos governos, uma atenção que se renovou após o governo do presidente Lula. Logo após a posse de Dilma, um texto do caderno editorial da Folha de São Paulo avaliava o significado daquele momento: o diagnóstico era que Lula falava demais e com isso ocupou um espaço que a própria imprensa não conseguiu ocupar. Ou seja: Lula teria conseguido se comunicar diretamente com a sociedade, especialmente com aquela parcela da sociedade que apoiava seu governo. Daí porque, com o argumento de que as oposições estavam enfraquecidas e não cumpriam bem o seu papel, a grande imprensa brasileira optou por manter uma crítica de viés oposicionista ao governo petista, com direito a comentários raivosos sobre os erros de português e as metáforas do presidente Lula. Com a posse de Dilma, avaliava o mencionado editorial, a imprensa via aberta a oportunidade de resgatar o seu papel: assumir a frente na formação da opinião pública. Dilma, que viu pesar sobre si o fardo da comparação com o carisma de Lula, necessariamente falaria menos que seu antecessor.
      De certa forma, isso aconteceu. Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da Presidência, reconheceu em entrevista sobre os dez anos de governo petista que não há uma capacidade ampla de contrapor leituras da realidade, comentando a narrativa que afirma ser o PT o partido mais corrupto de nossa história. A posição de Dilma sobre liberdade de imprensa é inequívoca e é correta. É significativo que a representante de uma geração que viu sua posição política tornar-se clandestina afirme seu repúdio ao silêncio das ditaduras. Isso não deveria se traduzir numa atuação tímida ou mesmo na inércia do governo no campo da comunicação.
      De fato, a geração de Dilma não teve a oportunidade de se formar falando abertamente todo e qualquer discurso político. Falavam apenas entre os pares e, mesmo assim, de forma muito cifrada e contida. Dilma chegou mesmo a expor o quão doloroso pode ser o contexto de uma fala no dia em que o senador Agripino rememorou as mentiras que ela havia contado aos torturadores. Mas Dilma tornou-se presidenta da República. Isso significa que, mais do que outros que passaram pela mesma experiência de clandestinidade, ela não pode se dar ao luxo de ser inibida diante da obrigação de falar.
      O assunto não é trivial. Os críticos de Dilma estão sempre atentos aos discursos da presidenta. Ao lançar seu plano de erradicação da pobreza, Dilma preparou um discurso no qual pontuou a importância do tema e, visivelmente alegre com a ocasião, afirmou que, como presidenta, não poderia se dar ao luxo de ser refém do medo ou da timidez. No dia seguinte, algum grande jornal afirmaria que esta foi uma fala pueril para uma presidente da República. Ao lançar o programa “Viver Sem Limite”, ela disse que aquele era “um momento que valia a pena ser presidenta”. Na posse de Marcelo Crivela, Dilma referiu-se ao “fardo de governar”. Nenhuma dessas falas passou desapercebida pela imprensa: notaram nisso um certo desgosto de Dilma com os infortúnios do cargo.
      Em suma, cada vez que Dilma ensaia aparecer entabulando um discurso que, afinal, exponha sua personalidade, ela recebe uma rajada de críticas. Alguns observadores consideram que a imprensa, agora, iniciou uma nova fase: os ataques pessoais e a tentativa de desqualificar Dilma. A revista Época sugeriu à presidenta que falasse menos. Por outro lado, na blogosfera, é possível ver com frequência o seguinte apelo: “Fala, Dilma!”. Muitos analistas compartilham a percepção de que o governo toma decisões importantes sem conseguir explicá-las à sociedade. Houve quem se surpreendesse positivamente com o pronunciamento em rede nacional sobre a redução das tarifas de energia elétrica: Dilma fez uma fala firme, bem pontuada, não deixando de responder aos boatos que já ameaçavam serem tomados como verdadeiros. O resultado foi impressionante: a oposição manifestou publicamente sua insatisfação até mesmo com a cor da roupa usada: o terninho vermelho teria sido uma alusão imperdoável ao partido da presidenta.
      Apesar de eficaz, o tal pronunciamento, na verdade, chegou tarde. A imprensa vinha divulgando há meses um possível risco de apagão sem apresentar fundamentos. Chegaram a publicar que uma reunião ordinária do Ministério de Minas e Energia, prevista com grande antecedência, era uma reunião de emergência. A imprensa atuou contra o país, mais do que contra o governo. Diante dos chamados gargalos de infraestrutura, há um esforço coordenado pelo governo de atrair investimentos estrangeiros para o setor. Os investidores orientam-se por expectativas e pelo contexto de maior ou menor confiança. Os efeitos de um “risco de apagão” circulando como se fosse verdadeiro não é uma notícia neutra e imparcial numa situação como essa.
      Mas é na política econômica que o governo Dilma talvez menos comunique-se bem. Há uma orientação na política macroeconômica no sentido de induzir o crescimento sustentado, entendendo aí a importância da indústria local e dos investimentos. Há uma política clara de desoneração do setor produtivo. Toda uma retórica sobre inovação e agregação de valor. Há uma preocupação em criar condições de infraestrutura também para dar surporte à competitividade do país. E, sobretudo, uma coordenação bem sucedida de mudança no patamar da taxa básica de juros que regula a economia. Como disse uma vez o jornalista Jânio de Freitas, pode-se criticar este pacote, mas há que reconhecer nele uma coerência. O problema é que, uma vez realizado este esforço, o governo parece esperar que este reconhecimento se dê espontaneamente ou por uma súbita boa vontade da grande imprensa. Isso não vai acontecer. Quem só espera, nunca alcança, sugeria Chico Buaque em seu “Bom Conselho”.
      A conquista de um novo patamar da taxa de juro é noticiada diariamente como se significasse leniência do governo com a volta da inflação. Que a inflação tenha várias causas e que uma delas seja justamente a necessidade de elevação do nível de investimentos e da capacidade de oferta da economia, pouco se fala quando a discussão passa a coincidir com a agenda eleitoral da oposição. Sem dúvida, os recursos que o governo deixa de arrecadar com o conjunto de desonerações não estiveram desde sempre à disposição. Recentemente, um ministro de Dilma disse que a economia do governo com o pagamento de juros da dívida pública foi de aproximadamente 170 bilhões de reais em 2012. Ou seja: o governo não goza de uma situação confortável. A elevação da taxa de juros tem um coro a seu favor, engrossado por aqueles que ganham financeiramente com ela e também pelos que querem ganhar politicamente. Apesar disso, tal elevação é apresentada como o único remédio para a inflação. O governo sabe que juros mais baixos são duplamente úteis: liberam recursos do próprio governo para o investimento e fazem com com que o capital privado busque alternativas mais lucrativas que o rentismo. Ou melhor: faz com que o rentismo deixe de ser a alternativa mais lucrativa para o capital privado. Entretanto, não comunica isso de forma ampla e sistemática.
      De nada adianta a presidenta simplesmente indignar-se com a manipulação de suas declarações sobre inflação. Se essa indignação vier seguida de um recuo, será ainda pior. E isso tem muito a ver com a questão da comunicação. É curioso, a esse respeito, ouvir as declarações do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso num documentário que conta parte de sua trajetória política. A uma certa altura, FHC comenta sua ida para o Ministério da Fazenda no governo Itamar Franco. Ele fala do Programa de Ação Imediata, que se desdobraria no Plano Real, e que tinha como objetivo o combate à inflação. Até aqui, nenhuma novidade. O curioso é o reconhecimento por parte de FHC que seu mérito foi essencialmente político. Ele contou com uma equipe de economistas que ele levou ao ministério e que tiveram a tarefa de desenvolver o plano. FHC diz que sua função foi importante pelo seguinte: os economistas têm ideias brilhantes, mas titubeiam na hora de colocá-las em prática, esperando que todas as variáveis estejam a favor. Seu papel foi explicar ao país, falar diariamente nas emissoras de rádio e televisão o sentido do programa. Ou seja, mais do que um grande mentor do Plano Real, FHC foi responsável por fornecer um discurso, justamente essa função que tantos, agora, queixam-se de faltar ao governo da presidenta Dilma.
      Ao longo destes dois anos, diversas críticas ao governo têm este ponto em comum: o governo se comunica pouco e, muitas vezes, se comunica mal. A comunicação afeta tanto a esfera estritamente política de um governo, quanto efeitos na economia e na sociedade. E não é uma questão de preferência: numa sociedade de massa a preocupação com a relação entre comunicação e opinião pública não é secundária. A Secretaria de Comunicação Social da Presidencia da República, hoje chefiada pela jornalista Helena Chagas, é responsável justamente por esta área do governo.
      Helena Chagas tem sua carreira ligada a grandes empresas de comunicação, tendo trabalhado no jornal O Globo e no SBT. Isoladamente, isso não representaria um problema para a comunicação do governo. Mas Dilma precisa de mais que uma gestão profissional a frente da comunicação. Como profissional, Helena Chagas parece ter sido uma jornalista que seguia estritamente a pauta colocada por seus patrões. Pesquisando um pouco, é possível encontrar sua participação no programa Roda Viva que entrevistou José Dirceu no auge das acusações do “mensalão” (a transcrição do programa encontra-se no site da FAPESP: http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/146/entrevistados/jose_dirceu_2005.htm ). Ela foi uma das entrevistadoras mais atuantes a inquirir Dirceu. Em nenhuma questão, qualquer vestígio de independência. A presidência da República precisa ter uma comunicação capaz de formular uma comunicação própria, autônoma, de interesse público e não simplesmente ficar a reboque da pauta que interessa ao oligopólio da imprensa.
      Nas coletivas de imprensa, por exemplo, Helena Chagas atua como bombeira, tentando apagar qualquer sinal de incêndio entre Dilma e os jornalstas. Em coletivas mal organizadas, na qual os jornalistas assediam a presidenta de forma desordenada, ouvimos sempre a voz da ministra dizendo “agora ela tem que ir embora, gente, tchau e obrigada”. Em meio ao falatório sobre a volta da inflação, Dilma foi novamente questionada sobre inflação depois da tal fala manipulada. A ministra tentou pôr fim à entrevista. Dilma, irritada, cortou a ministra: “Não, não tem de dar tchau. O Brasil não flerta com a inflação...”. Está registrado para quem quiser ver e ouvir. Ficou a impressão de que a presidenta não trabalha em sintonia com sua própria equipe de comunicação. Orientar a presidenta a recuar, dizer tchar e mandar beijinhos, é pouco, é muito pouco para alguém que coordena a comunicação social. Embora recuar, neste campo, certas vezes, possa ser útil, há que se encontrar a melhor forma de avançar. Se Dilma não se sai bem em coletivas relâmpago, que se organize outro formato. Em entrevistas que exigem apresentação pessoal e dos veículos, os jornalistas tendem a elaborar melhor as questões, diminuindo o tiroteio de perguntas simultâneas e anônimas que deixam a presidenta acuada. Dilma deveria considerar a possibilidade de não apenas chamar o jornalista Franklin Martins para uma conversa esporádica, mas sim realizar uma troca de comando da SECOM.
      Dirigir-se a todos os brasileiros é uma prerrogativa de um governo democraticamente eleito. Não é uma escolha. E tampouco deve depender apenas da capacidade pessoal da presidente.



sábado, 27 de abril de 2013

O cinema da delicadeza perdida


      “O abismo prateado”, filme do brasileiro Karim Aïnouz, é delicado. No contexto de um cinema que se vê às voltas com enredos excepcionais, observar o dia que segue ao abandono pelo homem amado na vida de uma dentista pode parecer normal demais para alguns. Há dez anos, uma das maiores bilheterias das salas brasileiras foi “Carandiru”, de Hector Babenco, filme que dispensa apresentações. Tivemos ainda “Cidade de Deus”. O Capitão Nascimento de “Tropa de Elite” tornou-se um herói popular em sua época. O Brasil deve a si mesmo a verdade sobre os anos de regime autoritário, o que faz surgirem filmes necessários sobre este período. A desigualdade social, a miséria urbana, enfim, contradições reais praticamente se impõem como temas naturais aos nossos diretores. Mesmo nossos personagens marginais costumam ser espetaculares, vide os filmes de Cláudio Assis, a começar pelo último, “Febre do rato”. Quando não, são vidas reais, memoráveis e merecidamente homenageadas como Tom Jobim, Gonzagão e tantos outros. Como reconhecer importância num filme centrado numa protagonista que é uma mulher de classe média, uma dentista largada pelo marido?
      A primeira resposta que me ocorre é que o cinema que tem se ocupado de personagens e situações cotidianas tem sido aquele que deriva quase que diretamente das novelas de televisão: mesmos diretores, mesmo elenco e, infelizmente, a mesma linguagem. Ou seja: os personagens comuns geralmente tem merecido um tratamento baseado em lugares comuns. E são duas coisas que não precisariam se confundir. Seja na comédia, seja no drama, o que encontramos é o estereótipo, o clichê e o preconceito. O avesso da poesia e da delicadeza. Karim Aïnouz experimenta neste, como em outros filmes, a potência de situações ou desejos simples em princípio.
      Mas outra diferença talvez seja que o rumo tomado por esta simplicidade não é aquele dos capítulos sobre perversões, seja dos tratados de psiquiatria, seja da dramaturgia de um Nelson Rodrigues. E esta parte do meu comentário talvez soe ligeiramente panfletária em favor do filme de Karim Aïnouz, o que decididamente não me preocupa. Acontece que fiquei um pouco surpreso e incomodado, ao ler uma reportagem sobre a pré-estreia do filme, com uma crítica que teria afirmado tratar-se de um filme conservador e carente de brasilidade, justamente por não explorar o sexo e os afetos ao gosto de um Nelson Rodrigues.
      Começa que a dramaturgia brasileira não é feita apenas de Nelson Rodrigues. Vale sempre lembrar, por exemplo, que muito antes de Nelson Rodrigues, Oswald de Andrade já tinha inaugurado uma teatrologia radicalmente transgressora. Quer dizer: Nelson Rodrigues é a parte e não o todo quando se fala de qualquer arte brasileira. Não citá-lo não significa ser carente de brasilidade. E o fato de que “Abismo Prateado” é livremente inspirado na canção de Chico Buarque de Holanda, é o que? Sabemos todos que, além de representar um ponto alto de nossa canção popular, Chico Buarque é um poeta que pode ser colocado ao lado de outros poetas populares como Noel Rosa.
       Além disso, como apontar caretice num cineasta que inicia sua trajetória filmando uma personagem como “Madame Satã”? O filme de Karim consegue superar a limitação das definições presentes nos pareceres criminológicos sobre João Francisco dos Santos e levar ao cinema aquilo que historiadores mais atentos já deveriam saber: que se tratava de um personagem carregado de papéis e representações: malandro carioca, homossexual, negro, artista, pobre. Contraventor de certas leis é apenas uma de suas facetas. É a carga de todas que o torna um personagem denso e contraditório talentosamente representado no filme. Num país onde a possibilidade de um “beijo gay” ainda serve de alavanca para audiência, não é qualquer coisa ter filmado o sexo entre dois homens como o fez Karim e sua equipe.
      E “O Céu de Suely”, o filme que traz Hermila Guedes no papel principal, seria um filme de olhar conservador? Onde está a caretice num roteiro que apresenta uma mãe solteira, obrigada a voltar para o Nordeste na casa da avó, e que, cansada de esperar pelo amparo do pai da criança, decide rifar o próprio corpo para uma noite de sexo com o vencedor, afim de arrecadar o dinheiro que lhe permita viajar para o lugar mais longe dali, onde possa refazer sua vida? Personagens como Suely, quando aparecem, costumam ser construídas apenas de modo a ressaltar uma noção de vulgaridade, a ignorância, a ausência de um universo afetivo tão complexo como o de qualquer outra pessoa. No lugar disso, Karim abre um céu de possibilidades, reencontrando sua personagem com o sonho.
      No “Abismo Prateado” alguns detalhes compõem as sutilezas do Brasil atual (mesmo não contendo nenhum argumento sociológico): a primeira amiga a que Violeta (vivida por Alessandra Negrini) recorre é uma mulher, uma chefe de obras de uma grande construção; o Rio de Janeiro, junto com suas praias é filmado com suas avenidas cheias que espremem e atropelam os ciclistas; um homem que é ao mesmo tempo pintor de paredes, cantor e vendedor de biscoitos, tem a guarda da filha e mora provisóriamente numa vã, enquanto viaja de volta para o Norte com o intuito de criar a menina próxima da família. Numa dada cena, é a primeira vez que pisam num aeroporto.
      Eu tenho podido acompanhar o cinema de Karim Aïnouz desde seu aparecimento. De fato, é uma obra que se abre às possibilidades e capaz mesmo de levar em conta o desejo do que ainda não existe. E, até agora, profundamente ligada às coisas deste Brasil. Perto de encerrar, lembro-me que um programa especial de Chico Buarque carrega o título de “O país da delicadeza perdida”.  



“Sobre sete ondas verdes espumantes”


      “Sobre sete ondas verdes espumantes” apresenta-se como um fime através da obra de Caio Fernando Abreu. Eu assisti a uma exibição do filme, em São Paulo, que encerrou a programação do festival de documentários É Tudo Verdade. Os diretores Bruno Polidoro e Cacá Nazário nos mostram imagens de diversas cidades, às vezes filmando as cidades mesmas, outras com o próprio Caio Fernando povoando-as, outras ainda como pano de fundo daqueles que dão seu testemunho sobre o escritor. Embora as sete ondas remetam a diferentes aspectos (solidão, espanto, amor, melancolia, transbordamento, irremediável e para além dos muros), a solidão aparece impressa em grande parte dessas imagens.
      Talvez para mostrar um escritor brasileiro universal, cosmopolita, os diretores optaram por filmar diversos países onde Caio passou, viveu e deixou amigos. Estes amigos falam um pouco sobre Caio e leem trechos de escritos marcantes deixados por ele. Embora faça justiça à vida do escritor, este me pareceu um ponto de desequilíbrio do filme: alguns dos amigos estrangeiros apenas leem burocraticamente um texto. Aliás, o teaser de divulgação mostra apenas estes amigos, deixando de apresentar os muitos amigos brasileiros que participam da história. E é justamente na participação desses brasileiros que o filme cresce. A atriz Grace Gianoukas escolheu um texto em feitio de oração. Um texto que, além de lindo, toca num lado pessoal de sua relação com Caio: antes de ser a responsável por trazer novos ares ao humor brasileiro, Grace era uma garçonete, que ralava para conciliar o emprego com suas performances teatrais. Segundo conta, Caio foi o amigo que deu uma força para que ela viesse a São Paulo.
      O trecho escolhido por Adriana Calcanhoto, além de revelar o carinho que existia entre os dois, expõe outro fato: é como se as cartas do amigo lhe sugerissem um mosaico, desse mosaico ela fez recortes, uma nova colagem, acrescentou novos ingredientes, e disso resultou a canção “Esquadros”. De maneira delicada, Adriana vai fazendo uma leitura que permite ao espectador do filme descobrir a relação entre as cartas e a canção. A participação de Maria Adelaide Amaral também é permeada pela amizade, falando, assim, da figura viva por trás das cartas.
      Quem não conhece um pouco ou um muito de Caio Fernando Abreu, possivelmente achará o filme um tanto ou quanto perdido. De qualquer forma, é um filme que rememora um homem que parecia estar sempre bucando a vida, mas estava constantemente às voltas com o sofrimento.