Diversos projetos em tramitação no Congresso tentam alterar as regras de demarcação e de exploração econômica das reservas indígenas. Mas só há acordo sobre o ressarcimento dos produtores
Étore Medeiros, do Correio Braziliense
No dia 10 de julho, a presidente Dilma Rousseff recebeu pela primeira vez lideranças indígenas no Palácio do Planalto, mantendo uma tradição de encontros entre índios e presidentes pós-regime militar. Enquanto isso, na Câmara dos Deputados, a Comissão de Agricultura aprovava o Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 227, que trata dos direitos dessa população. Por pouco, o projeto quase seguiu diretamente para o plenário, sem passar por outras comissões, em uma manobra que contou com a participação de líderes partidários da base do governo, que assinaram o requerimento para a tramitação em regime de urgência. Traídas, as lideranças indígenas consideraram a articulação como mais um capítulo de uma ação orquestrada, contínua e planejada dentro do Congresso Nacional. “Como é que o movimento indígena estava sentado com a presidente, e era aprovado, naquele momento, com apoio total da base do governo federal, essa lei que fere os direitos dos índios?”, questiona Lindomar Terena, de 38 anos, uma das lideranças da Terra Cachoeirinha, em Miranda (MS).
Desde a promulgação da Constituição Federal, em 1988, diversos projetos já tentaram definir regras para a demarcação de terras indígenas ou a exploração econômica dessas áreas (veja quadro). Em carta aberta publicada na última segunda-feira, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, que reúne 89 associações da Região Amazônica, elencou 49 iniciativas parlamentares, de 13 partidos, que atentam contra direitos garantidos aos índios pela Carta Magna. O mais antigo dos projetos, de 1990, tentava regulamentar a mineração em terras indígenas.
O caso mais recente de divergências entre os dois mundos, antes do PLC 227, foi a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº215, que transfere o poder de demarcação de terras indígenas do Executivo para o Congresso Nacional. Caciques e entidades de defesa dos direitos dos índios reagiram ao projeto invadindo o plenário da Câmara, em abril.
“Volta e meia, abre-se uma temporada de caça aos direitos indígenas. Em geral, elas ocorrem quando se tem algum grande conflito na ordem do dia. O foco está em Mato Grosso do Sul, principalmente. É por aí que está se dando essa reação mais direta de parte da bancada ruralista”, analisa Márcio Santilli, diretor do Instituto Socioambiental e vice-presidente da Funai entre 1995 e 1996. O estado citado por Santilli lidera a lista de homicídios de índios no Brasil na última década, com 317 assassinatos, contra 247 em todo o resto do país.
Conflitos reacesos
Em 30 de maio, o caso mais recente: a morte do terena Oziel Gabriel, durante uma o cumprimento de uma decisão judicial de reintegração de posse de uma fazenda, em Sidrolândia (MS). “Para anular o conflito, não adianta querer paralisar as demarcações, muito menos mudar as regras do jogo. A tendência, se o PLC nº227 for aprovado, é reacender conflitos que já foram superados e manter insolúveis os conflitos atuais, que exigem uma solução”, lamenta Santilli, que prevê uma disputa no Supremo Tribunal Federal, caso a aprovação do texto se confirme.
Ante as críticas ao projeto, o relator, deputado federal Moreira Mendes (PSD-RO), um dos 228 membros da Frente Parlamentar da Agropecuária, diz que o cenário é de conflito declarado “em praticamente todos os estados brasileiros”, mas culpa outros agentes. “Há um descontrole por parte da Funai, de algumas ONGs, que têm uma voracidade sem tamanho de criar terras indígenas e de ampliar as já existentes. Querem criar terra indígena onde não tem uma árvore plantada”, rebate.
O secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Cléber Buzatto, argumenta que o PLC nº227 tenta incluir interesses privados como sendo de “relevante interesse público da União”, sob o pretexto de regulamentar o artigo 231 da Constituição. “Isso é uma evidente afronta não só ao direito dos povos indígenas, mas da União. As terras indígenas, quando reconhecidas, são bens e propriedade da União. Com o projeto, querem transformá-las em bens privados”, acusa.
Para Buzatto, o PLC é apenas um exemplo de uma grande articulação entre ruralistas e Poder Executivo Federal. “O que vemos é um processo muito articulado de ataque a esses direitos, que pode resultar num retrocesso que remonta à década de 1970, quando os índios eram perseguidos e o governo tinha como plano integrá-los ao país”, lamenta.
Em 17 de julho, após uma reunião entre o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), lideranças indígenas e parlamentares, o requerimento de urgência para a tramitação do PLP, proposto pela bancada ruralista, naufragou. Depois da intervenção de deputados do PV e do PSol, o projeto deverá ser discutido em uma comissão especial, com prazo e composição ainda não definidos. Enquanto isso, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, prometeu publicar, no início de agosto, uma portaria com novas regras para os processos de demarcação. A medida está em discussão entre a Casa Civil, a Advocacia-Geral da União e a Funai.
“Há um descontrole por parte da Funai e de algumas ONGs, que têm uma voracidade sem tamanho de criar terras indígenas e ampliar as já existentes. Querem criar terra indígena onde não tem uma árvore plantada”
Moreira Mendes (PSD-RO), deputado federal
Na fila para votação
Projetos de lei que tratam da demarcação de terras indígenas e da possibilidade de exploração econômica
PLP 227/12 (PSD)
Define o que são as áreas de “relevante interesse público”, onde não pode haver áreas indígenas
PEC 237/2013 (PR)
Permite o arrendamento de terras indígenas a produtores rurais, hoje vedada por lei
PL 1610/96 (PMDB)
Regulariza a exploração de minérios em terras indígenas, hoje proibida pela Constituição
PEC 215/00 (PPB)
Transfere os poderes de demarcação de terras indígenas do Executivo para o Congresso Nacional.
“Volta e meia, abre-se uma temporada de caça aos direitos indígenas. Em geral, elas ocorrem quando se tem algum grande conflito na ordem do dia. O foco está em Mato Grosso do Sul, principalmente”
Márcio Santilli, diretor do Instituto Socioambiental e ex-presidente da Funai
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