sexta-feira, 2 de agosto de 2013

"Parceiros" em crise

Do Correio Braziliense

Governo americano e congressistas dos dois partidos protestam contra a Rússia por conceder asilo temporário ao ex-agente que revelou o rastreamento da internet. Barack Obama ameaça suspender encontro com Vladimir Putin e coloca a relação bilateral "em avaliação"
Renata Tranches

Ignorando a pressão americana, a Rússia concedeu ontem asilo temporário de um ano ao ex-consultor de inteligência Edward Snowden e abriu uma crise com os Estados Unidos, em uma reedição das tramas de espionagem que marcaram a histórica rivalidade entre os dois países durante a Guerra Fria, na segunda metade do século 20. O governo americano disse estar “muito decepcionado” e ameaçou rever a cúpula bilateral programada para as vésperas da reunião do G20, em setembro. No Congresso, políticos democratas e da oposição republicana criticaram duramente a decisão de Moscou. Pivô do escândalo que expôs o esquema de espionagem dos serviços secretos americanos sobre telefonia e internet, Snowden deixou a zona de trânsito de um aeroporto da capital russa depois de 39 dias confinado.

A concessão do asilo tirou do limbo jurídico o homem que vazou milhares de documentos sobre programas de espionagem americana mundo afora. O advogado Anatoli Kutcherena surpreendeu ao anunciar que seu cliente havia deixado o aeroporto de Sheremetyevo com um “documento que prova que recebeu asilo na Rússia por um ano”. O papel expira em 31 de julho de 2014. Considerado fugitivo pela Justiça americana, Snowden está em um “lugar seguro”, porém confidencial. Em declarações divulgadas pelo site WikiLeaks, o ex-colaborador da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos EUA afirmou que a administração Obama “não demonstrou respeito algum pelas leis internacionais, mas, no fim das contas, a lei venceu”. “Agradeço à Rússia por ter me concedido o asilo”, disse.

Mas, se o clima em Moscou era de comemoração, Washington foi varrida por uma onda de indignação. O porta-voz da Casa Branca, Jay Carney, afirmou que o governo está “extremamente decepcionado” com a decisão da Rússia. Ela foi tomada, segundo Carney, mesmo depois “dos pedidos claros e legais, em público e em particular, para que Snowden fosse expulso para os EUA, a fim de responder às acusações que pesam contra ele”. O próprio Obama chegou a telefonar para Putin e pedir a deportação do fugitivo. O encontro dos dois presidentes, que deveria acontecer em setembro, antes da cúpula do G20, está sob avaliação, segundo o porta-voz americano.

As reações foram duras também de parte dos congressistas, tanto partidários do governo como da oposição. O democrata Robert Menendez, presidente da Comissão de Relações Exteriores no Senado, classificou a decisão de Moscou como “um golpe para as relações entre russos e americanos”. O colega de bancada Charles Schumer, que representa Nova York, afirmou que a Rússia “nos apunhalou pelas costas”. O líder presidente da Câmara dos Deputados, o republicano John Boehner, disse esperar que Obama e Putin encontrem uma solução “satisfatória para o povo americano”. O mais enérgico foi o senador republicano John McCain, veterano da Guerra do Vietnã e candidato derrotado à Casa Branca em 2009. “A ação da Rússia, hoje, é uma desgraça e um esforço deliberado para constranger os EUA”, protestou.

 Abusos
Ex-embaixador americano em Moscou, o professor da Universidade Estadual do Kansas Dale Herspring considerou que a concessão de asilo a Snowdew deve ter um “impacto muito negativo” para as relações entre as duas potências. “No fim das contas, os russos sabem que só existe uma ação capaz de resolver esse problema, que é mandá-lo de volta”, disse Herspring, em entrevista ao Correio. Depois da chegada de Snowden à Rússia, Putin disse repetidas vezes que o ex-agente americano não foi convidado pelo governo. Mesmo assim, ponderou, não poderia expulsá-lo, uma vez que não havia cometido nenhum crime em solo russo. Putin também afirmou que, se quisesse ficar no país, o ex-colaborador da NSA deveria comprometer-se a não fazer mais revelações capazes de prejudicar os “parceiros americanos”.

O que torna a situação ainda mais atípica, segundo Herspring, é o fato de o presidente russo ter “pouco respeito” pelo ex-consultor da NSA ou por aquilo que ele fez. “Para Putin, considerando seus tantos anos no serviço secreto soviético, Snowden é um traidor, que nunca deveria ter revelado os segredos de seu país”, avalia o ex-embaixador americano. Se Snowden abriu mão de sua vida nos EUA para denunciar a vigilância e os abusos de seu governo, opina Herspring, não vai demorar muito até que ele descubra que a Rússia “tem um histórico muito ruim de direitos humanos”. “Espere até ele estar propriamente na Rússia e descobrir o que é um controle de verdade”, opinou o veterano diplomata. Snowden pediu asilo a mais de 20 países, mas muitos rejeitaram, inclusive o Brasil. Nicarágua, Venezuela e Bolívia se disseram dispostos a recebê-lo.

Em meio ao enredo diplomático, o governo Obama enfrenta a pressão interna com os questionamentos no Congresso sobre o programa de vigilância das telecomunicações dentro dos EUA. Um dia depois de altos funcionários da área de inteligência prestarem esclarecimentos no Senado, o presidente reuniu-se ontem com um grupo bipartidário de parlamentares, na Casa Branca. Em 24 de julho, a Câmara rejeitou, em votação apertada, uma proposta de emenda que teria cortado verbas do programa.

 “Denunciante” ou “traidor”?
A maioria dos americanos considera Edward Snowden um “denunciante”, e não um “traidor”, de acordo com uma pesquisa da Universidade Quinnipiac. Quase 55% dos entrevistados acreditam que o jovem é um “delator”, enquanto 34% acreditam que ele traiu seu país. Cerca de 11% disseram estar indecisos. “A maioria tem uma imagem positiva de Snowden, mas isso foi antes que ele obtivesse asilo político na Rússia”, indicou Peter Brown, diretor assistente do instituto de pesquisas da Quinnipiac.

 Embaixadas sob alerta
Os Estados Unidos fecharão um número não especificado de embaixadas, neste domingo, devido a temores sobre questões de segurança. A porta-voz do Departamento de Estado, Marie Harf, afirmou que, depois de domingo, o governo avaliará as opções, sem especificar o tipo de ameaça ou quais representações serão fechadas. A decisão foi tomada “por precaução e para salvaguardar os nossos funcionários e outras pessoas que possam estar em nossas instalações”. Os EUA aumentaram suas medidas de segurança desde o ataque ao consulado em Benghazi, na Líbia, em 11 setembro de 2012, que terminou com a morte do embaixador Chris Stevens.

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