terça-feira, 20 de agosto de 2013

"Flores Raras"...

[Comentário meu] Graças à força da história e das personagens, "Flores Raras" consegue superar debilidades do ponto de vista cinematográfico e, apesar da preocupação em tornar essa história palatável ao consumo de massa (e não é essa a única preocupação mercadológica de Bruno Barreto: atento a carreira internacional, o filme é 99% falado em inglês e seu trailer brasileiro, temendo afastar o público, enfatiza os únicos trechos falados em português; forçou referências a filmes de grande bilheteria; e tenta fazer um cálculo preciso e exagerado sobre as chances de faturar alguma estatueta do Oscar 2014), o filme resulta interessante. De certa forma, isso está na própria fala do diretor, quando em entrevistas sobre "Flores Raras", aponta similaridades entre seu longa e "O Beijo da Mulher Aranha", afirmando que não é só a qualidade que faz o sucesso de um filme, mas também o momento. Assim como nos anos 1980, Barreto acredita que estamos num momento de forte (e ao mesmo tempo fraca, eu diria) discussão política sobre a homossexualidade. Mas, como todo diretor que teme ver seu filme ser visto, sobretudo, como um filme gay, ele se adianta dizendo que o filme é sobre algo muito maior: o amor. Há uma razão de mercado nisso tudo, para além das declarações deste ou daquele diretor. O chamariz de um possível "beijo gay" ainda costuma servir como alavanca para audiência de novelas decadentes. Mesmo a divulgação de "Flores Raras" (que não se limita a esse tipo de convenção) destaca que Glória-Pires-aparece-em-cenas-íntimas-com-outra-mulher-no-trailer. A caricata personagem Crodoaldo vai render uma das estreias mais alardeadas do cinema brasileiro neste ano: não importa a qualidade, mas sim o momento. E o momento, para quem tem uma sintonia fina com o Mercado, parece dizer que a representação da homossexualidade vende bem.

Enfim...

Ponto questionável é a representação do político udenista Carlos Lacerda, que surge estranhamente carismático na tela do cinema e tem seus equívocos políticos  (apóia a ditadura militar e mais tarde, frustadas suas expectativas presidenciais, tenta engrossar uma frente ampla contra ela) atenuados neste filme.

Chega a ser bizarro que o mesmo diretor que parece ter buscado livrar-se de estereótipos ao realizar "Flores Raras" tenha como próximo filme a ser lançado, nada mais nada menos que "Super Crô". Flores para o Mercado...

O filme é baseado no livro "Flores Raras e Banalíssimas" de Carmem L. Oliveira

A seguir, pequeno artigo publicado na Folha de São Paulo, enfatizando a questão política das mulheres lésbicas:

Esperado pela comunidade lésbica, filme 'Flores Raras' vai além disso, por Rita Quadros

Este poderia ser só mais um filme ansiosamente esperado pela comunidade lésbica e, embora seja, vai além. "Flores Raras" nos conta a história de duas mulheres vivendo os encontros e desencontros do amor e da vida, os traumas familiares e suas consequências e a maneira como, cada uma a seu modo, sobrevivem a tudo isso.

Estamos diante de um belo filme. A concretude e objetividade de uma, que explode um morro para proporcionar uma vista maravilhosa à amada, e a subjetividade de outra, que se liberta diante do estrangeiro que a acolhe.

A fortaleza e a assertividade se fundem com a insegurança e a sensação de não ter lugar no mundo: uma se fundindo com outra, vivendo a troca que torna surpreendente o final dessa história de amor intenso e denso.

A trama aguça a curiosidade pela poesia de Bishop e o papel de Lota na arquitetura carioca. Mas tem mais. Uma mulher muda a vida de outra. Empresto a frase de Norma, promotora legal popular, no documentário "Imagem Mulher", que dialoga com o papel da mídia na legitimação da violência contra a mulher (a ser exibido em setembro).

A militância lésbica está colocada diante dos desafios de romper com os padrões heteronormativos das relações entre mulheres e de participar na construção de um mundo onde mulheres não sejam menos que homens.

No filme, as duas transitam sem problema por salões, festas e reuniões, tratadas com respeito e admiração. Em tempos de debates sobre laicidade do Estado, concepções de cidadania e novos arranjos familiares, "Flores..." nos mostra o quanto o poder aquisitivo ainda é passaporte para acesso a direitos.

Tempos em que a intolerância religiosa interfere de maneira brutal na vida das pessoas, quando direitos podem se tornar moeda de troca em espaços que deveriam garantir acessibilidade e equidade nas políticas públicas e no Judiciário.

Uma mulher muda a vida de outra mulher. Mas, onde estão as mulheres? Onde estão as lésbicas? Há mais de 30 anos a participação política dessas mulheres tem contribuído para os avanços.

Tem mais. Precisamos superar a violência física e/ou psicológica que pode ser impingida pelo simples fato de a pessoa ser mulher, por usar roupa "inadequada" ou pelo "despudor" de se relacionar com alguém do mesmo sexo.

Glória Pires e Miranda Otto são dignas de homenagens. Assim como Bias e Roses, Célias e Camilas, Érides e Anas Cleides e Telmas, Silvias e Cris. E tantas outras anônimas que em seu dia a dia, se comprometem e transformam a vida de tantas outras mulheres. Todas podem ser flores, mas nada banais.

RITA QUADROS, feminista, integra a coordenação do Cinemulher e coordena a área de controle social da Secretaria de Política para Mulheres de São Paulo.


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