segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Marilena Chauí: defendendo a política para além do cartaz

Trecho de entrevista da Marilena Chauí, de agosto, falando sobre Reforma Política, manifestações, governo e redes sociais.

Juvenal Savian Filho – O que você diz sobre as críticas ao governo do PT?

Marilena Chaui - Vamos começar pela questão da moralidade. Quando houve a crise do Mensalão, escrevi um artigo para a página 3 da Folha de São Paulo (foi meu último artigo para a Folha), em que eu dizia o seguinte: uma visão moralista fala de ética na política. Uma visão efetivamente ética tem que falar em ética da política. A ética na política é a transposição de valores privados para o espaço público; a ética da política é a criação de instituições que tenham valores democráticos e republicanos. Faz mais sentido defender a ética da política, porque se há boa qualidade das instituições, não vai poder haver corrupção, pois a corrupção decorre das péssimas qualidades das nossas instituições, que não são verdadeiramente republicanas nem verdadeiramente democráticas. Eu dizia, naquele artigo, algo que tenho dito desde 1994: que era necessário fazer uma reforma política. Nós herdamos da ditadura o pacote de abril de 1975 do general Golbery (do Couto e Silva). Esse pacote, que transformou os territórios em estados, dividiu o Mato Grosso, dividiu o Piauí, o Pará, enfim, rearrumou o país, tinha como finalidade garantir a maioria para a ARENA e impedir a ação política do MDB. Dessa decisão vieram os casuísmos, o sistema eleitoral e a forma completamente absurda da representação dos estados que não leva em conta a densidade demográfica de cada estado da federação. Um dos articulistas da Folha respondeu, dizendo que eu era fisiológica com relação ao PT e que eu era uma comadre do governo. Nunca mais escrevi na Folha. Então, desde 1994 e 2004 eu bato na tecla da reforma política. Por outro lado, me chamar de fisiológica é muito engraçado, porque nunca tive cargo no partido. Ocupei a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo no governo da Erundina (aliás, eu havia recusado, explicando a ela que não podia, não devia nem queria o cargo; mas ela foi mais persuasiva…). Quando me perguntam: “Você tem uma ideia do que poderia ser o inferno?”, digo: “Sim. A Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo”. Essa experiência foi para mim uma violência metafísica. Não tenho cargo em governos. Não tenho cargos no PT. Não represento nenhum político de coisa nenhuma. Eu sou fisiológica no quê? Isso é o que eu chamo de abominação cognitiva, que significa ausência de análise e uso de uma expressão qualquer que não designa realidade nenhuma. Quer dizer, fisiológica no quê? Nas surras políticas que eu levo? Porque o que eu apanho por ser petista e defender o PT e o governo não está no gibi! Já me chamaram de tudo. Só não fui chamada de santa, querubim e duende. Então, é fisiologismo que eu tenha princípios políticos e que os defenda como tais? A minha questão com relação à moralidade é: o sistema gerado pelo general Golbery, que organiza os sistemas partidário e eleitoral, impede que qualquer governante eleito para o poder executivo possa governar só com o seu partido e o obriga a fazer coalizões que destroem a estrutura partidária, os programas e metas, levando a uma perda de identidade. O exemplo que eu costumo dar é o caso da Luiza Erundina. Era um governo do PT e do PCdoB. Só. Não tinha coalizões nem “base aliada”. Mas, quando ela deixou a Prefeitura, haviam ficado parados na Câmara Municipal 325 projetos de lei, a tarifa zero não passou, e uma série de propostas que foram votadas não foram aprovadas. Alguns políticos influentes pagavam os vereadores. Eu não vou dizer o nome deles, mas vou contar um episódio: quando Erundina apresentou seu primeiro projeto, o José Eduardo Martins Cardoso (atual ministro da Justiça), que era o chefe de gabinete, foi negociar com os vereadores. Havia um vereador, tradicional na casa, que falava pelos outros… Ele fez a seguinte pergunta: “Mas, secretário, o senhor não trouxe a maleta?”. O secretário disse: “Qual maleta?”. Ele falou: “A maleta para a gente negociar. Tem um cara aí que já ofereceu para cada um de nós 10 mil dólares. A prefeita cobre?”. Evidentemente, como a prefeita não “cobria”, tivemos 325 projetos de lei que não foram discutidos nem votados. Nós governamos com a cara e a coragem. Ela não conseguiu nenhum empréstimo federal, nenhum empréstimo estadual e bloquearam os pedidos de empréstimos internacionais. Ela governou com os impostos de uma prefeitura que tinha sido quebrada pelo Jânio Quadros. O atual sistema partidário e eleitoral faz com que nenhum eleito para o executivo disponha de maioria no legislativo. Ora, a maioria de projetos e programas precisa de um legislativo que os aprove. Com o sistema atual você é forçado às coalizões. Então, precisamos fazer a reforma política. Mas quando alguém propõe uma Constituinte Específica para isso, o que o PSDB diz? Que é golpe! Ele não quer que mude o sistema político! Vem dizer que a corrupção está do nosso lado quando eles não querem a mudança do sistema político? Além do que, com esses legislativos que estão aí, quem vai fazer a reforma política? Tem de haver uma Constituinte Específica. A arrogância moralista não faz uma análise de por que o sistema partidário e o sistema eleitoral são como são. Por que a classe média não saiu às ruas numa manifestação nacional para derrubar o general Golbery e o Pacote de Abril, já que ela quer a ética na política?  Não vi nenhum deles na rua. Não ouvi um só grito da parte deles. E agora eles gritam contra o efeito daquilo que o Golbery fez como se fosse obra do PT. E não querem que eu fale em abominação política e cognitiva?
Um outro aspecto é a crítica que a esquerda também faz ao governo e ao PT. Por que há, por exemplo, tanta crítica do PSTU, do PSOL e de outros partidos de esquerda?
Vou fazer uma distinção entre pensamento mágico e situação efetiva de vários partidos de esquerda. Começo pelo pensamento mágico. Estive em um debate em que uma participante propôs o programa mínimo para os próximos dias: tirar todos os evangélicos dos legislativos, tirar a Dilma, estatizar os bancos, estatizar as empresas multinacionais e aproveitar a crise mundial do capitalismo, que possivelmente é a última. No caso dos mais velhos, porém, o pensamento mágico é irresponsabilidade política. É importantíssimo que a sociedade faça críticas e leve o governo em direção à esquerda. O Lula e a Erundina diziam isso: “Para poder governar eu preciso dos grandes movimentos sociais puxando para a esquerda”. Ora, com uma ação e um pensamento mágicos, em vez de você puxar para a esquerda e forçar os governos a ir nessa direção, você levanta uma barreira que faz com que ninguém queira ir na sua direção porque ela é tão absurda, irresponsável e ingênua, que ninguém leva a sério. Passo à questão dos vários partidos de esquerda menores (em termos de número de filiados e de representantes eleitos). Esses partidos não possuem uma base social sólida que lhes dê uma clara representação nacional. Por isso, existem principalmente sob a forma do discurso intempestivo. Se você perguntar qual é a ação política efetiva que eles realizaram ou que estão realizando, e de alcance nacional, não há nenhuma. Se estivéssemos numa ditadura e eles não pudessem agir, eu calaria minha boca imediatamente. Mas nós estamos numa democracia; portanto, eles podem agir. Mas sua ação é pontual, fragmentada e tem a finalidade (justa e necessária) de marcar presença. Por que isso? Porque é a única forma de aparecer no cenário nacional. Se você tomar os meios de comunicação, vai ver uma coisa interessantíssima. Quando, em termos eleitorais, se achou que Heloísa Helena tinha alguma possibilidade de impedir a eleição da Dilma, os meios de comunicação a promoveram de todas as maneiras, até o instante em que ela fez bobagem, porque ela é despolitizada. Passaram então para Marina. Tentaram usá-la. E quando perceberam que a Marina não ia dar conta, a abandonaram também. Então, há uma espécie de exército político de esquerda que funciona como um exército de reserva que as oposições e a mídia instrumentalizam e, depois de usar, esvaziam.
Como você vê o elogio dos movimentos sociais e das lideranças individuais, feito por alguns intelectuais que defendem a superação do modelo partidário?
Eu acho que falta uma verdadeira análise econômica, uma verdadeira análise de classe e uma verdadeira análise do que seja a democracia. Se você não faz uma análise da forma da propriedade, com base na qual você pode pensar a divisão social; se não pensa a sociedade como contraditória e conflituosa; e, sobretudo, se não pensa como exercício de poderes tácitos e implícitos, nunca vai poder operar no campo político. Porque vai operar no campo político sob a forma da explosão espontânea disto ou daquilo. Como é que se garante a vida de coletividades inteiras, a vida de um país inteiro, à espera de que aqui e ali, como cogumelo, brote um líder que fale isso, outro que fale aquilo? Mas não é só isso! Quem vai realizar o que deve ser realizado? Eu posso sair pela rua e dizer: “É o seguinte: amanhã não quero latifúndio no Brasil, não quero agronegócio e quero o fechamento dos bancos. Ponto”. Aí, eu vou nas redes sociais e conclamo o país para ouvir a minha voz nessa direção. OK. Todo mundo aprova. Mas quem executa? Esses elogios são de uma cegueira muito grave, porque há um universo que é composto pela propriedade, pelas classes sociais e pelas institucionalidades. Como é que se vai operar sem isso? Você pode transformar tudo isso numa outra direção, mas não pode dizer que você vai operar sem isso. Você não está em Atenas! Você não está em Roma! Até Roma virou Império e Atenas teve os 30 tiranos! Eu insisto que precisamos compreender o sistema planetário de controle e vigilância postos pela web e pela internet, no qual o centro está em toda parte e a circunferência em nenhuma, disseminado numa infinidade de máquinas pelo mundo, formando, como explica Paul Mathias, uma nebulosa informacional amplamente insondável, diversamente organizada, às vezes aberta e disponível, mas frequentemente fechada e secreta. A internet nasce numa infraestrutura econômica que ela mantém invisível, aparecendo como um ambiente universal de informação e comunicação globalmente uniforme. Ora, nossa experiência reticular está circunscrita a um número restrito de programas aplicativos que permitem as múltiplas operações desejadas em um número limitado de gestos previstos e uniformes em todo o planeta, sem que tenhamos a menor ideia do que são e significam os protocolos informáticos que empregamos. Ignoramos os procedimentos operatórios que a criaram e a conservam, as leis de sua formação e configuração, sua arquitetura funcional. Por isso, não é possível celebrar as redes sociais como libertárias em si e por si mesmas, dispensando as mediações políticas.

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