Uma
sessão de cinema dupla: Vestido de Laerte (Claudia Priscilla
e Pedro Marques, 2012)e Olhe para mim de novo (Claudia
Priscilla e Kiko Goifman,2011). A exibição destes dois filmes
conjuntamente não é aleatória. Ambos ostentam personagens que
trazem a experiência de gênero para o primeiro plano, e de forma
talvez desconcertante. E, muito embora o primeiro seja um curta
metragem e o segundo uma espécie de documentário road movie, o
diálogo possível entre os dois não deixa Vestido de Laerte em
nenhuma desvantagem.
Embora o
que salte aos olhos, no caso de Laerte, seja a opção pelo feminino,
o caminho para o qual Laerte aponta não me parece ser, simplesmente,
o do “isso ou aquilo”. A graça de Laerte é estar na linha de
uma afirmação pouco explorada em nossa sociedade: a de que uma
expansão das possibilidades de experienciar o gênero tende a
colocar em questão a importância de uma linha divisória tão
excludente entre o feminino e o masculino.
Nesse
sentido, a outra história, a de Syllvio Luccio de Olhe para mim
de novo, reserva diferenças importantes. Syllvio Luccio “nasceu
mulher, tornou-se lésbica e agora é homem”. Vive essa experiência
no contexto de um sertão nordestino que preza muito o valor da
virilidade como algo que é central para os homens. A esse aspecto
tradicional soma-se a forte presença das igrejas evangélicas nas
classes populares, inclusive, sendo esta a confissão religiosa da
filha
de Syllvio (filha que Syllvio teve antes de tornar-se trans e que ofereceu à própria mãe como se estivesse recompensando a filha-mulher que ele não foi). É verdade que Syllvio politizou-se, tem consciência de sua militância, busca informações e não se furta aos enfrentamentos que as fronteiras de gênero impõem para uma pessoa como ele. Mas nenhuma ação acontece fora de seu contexto. E é perceptível que, mesmo questionando em parte o tradicionalismo, a experiência de Syllvio está de acordo com esse mesmo tradicionalismo em outros aspectos. Tudo o que diz respeito àquilo que ele viveu como feminilidade é revestida de grande sofrimento. Não necessariamente porque a coisa narrada seja violenta ou dolorosa em si mesma, mas por carregar aquela percepção do feminino como algo vergonhoso, da ordem do mal, da culpa. Tanto que chama a atenção duas atitudes opostas que Syllvio tem em relação à genitália. Ele conta sobre suas idas ao ginecologista de forma dramática, afirmando que, para qualquer mulher, mostrar a vagina é sempre algo vergonhoso e para ele, que já faz uso de hormônios masculinos, essa vergonha é ainda maior. A oposição vem quando Syllvio conta de sua relação com a prótese de órgão masculino. Aqui, a vergonha diante do sexo desaparece. Syllvio brinca, coçando a genitália, exibindo-a, oferecendo-a ao toque de colegas curiosos. Não sai de casa sem ela em qualquer ocasião. É motivo de orgulho. Syllvio também ressalta o seu desejo por mulheres como um desejo de posse e a conquista como uma atitude masculina.
de Syllvio (filha que Syllvio teve antes de tornar-se trans e que ofereceu à própria mãe como se estivesse recompensando a filha-mulher que ele não foi). É verdade que Syllvio politizou-se, tem consciência de sua militância, busca informações e não se furta aos enfrentamentos que as fronteiras de gênero impõem para uma pessoa como ele. Mas nenhuma ação acontece fora de seu contexto. E é perceptível que, mesmo questionando em parte o tradicionalismo, a experiência de Syllvio está de acordo com esse mesmo tradicionalismo em outros aspectos. Tudo o que diz respeito àquilo que ele viveu como feminilidade é revestida de grande sofrimento. Não necessariamente porque a coisa narrada seja violenta ou dolorosa em si mesma, mas por carregar aquela percepção do feminino como algo vergonhoso, da ordem do mal, da culpa. Tanto que chama a atenção duas atitudes opostas que Syllvio tem em relação à genitália. Ele conta sobre suas idas ao ginecologista de forma dramática, afirmando que, para qualquer mulher, mostrar a vagina é sempre algo vergonhoso e para ele, que já faz uso de hormônios masculinos, essa vergonha é ainda maior. A oposição vem quando Syllvio conta de sua relação com a prótese de órgão masculino. Aqui, a vergonha diante do sexo desaparece. Syllvio brinca, coçando a genitália, exibindo-a, oferecendo-a ao toque de colegas curiosos. Não sai de casa sem ela em qualquer ocasião. É motivo de orgulho. Syllvio também ressalta o seu desejo por mulheres como um desejo de posse e a conquista como uma atitude masculina.
Ainda
assim, não é simplesmente classificável a experiência de Syllvio.
Nela convivem reforços das concepções tradicionais de gênero e
questionamentos dessas mesmas concepções, dependendo do que está
em jogo. A lógica do ser isso ou aquilo convive com a lógica
do ser isso e aquilo.
Os dois
filmes expõem que este terreno das fronteiras ainda é um terreno de
luta política. Mas muito menos cerceado pelo tradicionalismo, com
uma aceitação melhor resolvida por parte de seus familiares,
protegido pelo reconhecimento prévio de sua carreira e por uma
exposição midiática favorável, Laerte pode levar esta política
para campos menos dramáticos, mais próximos de uma experiência
estética, mas que também almeja o espaço da ampliação de
direitos.
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