“O
abismo prateado”, filme do brasileiro Karim Aïnouz, é delicado.
No contexto de um cinema que se vê às voltas com enredos
excepcionais, observar o dia que segue ao abandono pelo homem amado
na vida de uma dentista pode parecer normal demais para alguns. Há
dez anos, uma das maiores bilheterias das salas brasileiras foi
“Carandiru”, de Hector Babenco, filme que dispensa apresentações.
Tivemos ainda “Cidade de Deus”. O Capitão Nascimento de “Tropa
de Elite” tornou-se um herói popular em sua época. O Brasil deve
a si mesmo a verdade sobre os anos de regime autoritário, o que faz
surgirem filmes necessários sobre este período. A desigualdade
social, a miséria urbana, enfim, contradições reais praticamente
se impõem como temas naturais aos nossos diretores. Mesmo nossos
personagens marginais costumam ser espetaculares, vide os filmes de
Cláudio Assis, a começar pelo último, “Febre do rato”.
Quando não, são vidas reais, memoráveis e merecidamente
homenageadas como Tom Jobim, Gonzagão e tantos outros. Como
reconhecer importância num filme centrado numa protagonista que é
uma mulher de classe média, uma dentista largada pelo marido?
A
primeira resposta que me ocorre é que o cinema que tem se ocupado de
personagens e situações cotidianas tem sido aquele que deriva quase
que diretamente das novelas de televisão: mesmos diretores, mesmo
elenco e, infelizmente, a mesma linguagem. Ou seja: os personagens
comuns geralmente tem merecido um tratamento baseado em lugares
comuns. E são duas coisas que não precisariam se confundir. Seja na
comédia, seja no drama, o que encontramos é o estereótipo, o
clichê e o preconceito. O avesso da poesia e da delicadeza. Karim
Aïnouz experimenta neste, como em outros filmes, a potência de
situações ou desejos simples em princípio.
Mas
outra diferença talvez seja que o rumo tomado por esta simplicidade
não é aquele dos capítulos sobre perversões, seja dos tratados de
psiquiatria, seja da dramaturgia de um Nelson Rodrigues. E esta parte
do meu comentário talvez soe ligeiramente panfletária em favor do
filme de Karim Aïnouz, o que decididamente não me preocupa.
Acontece que fiquei um pouco surpreso e incomodado, ao ler uma
reportagem sobre a pré-estreia do filme, com uma crítica que teria
afirmado tratar-se de um filme conservador e carente de brasilidade,
justamente por não explorar o sexo e os afetos ao gosto de um Nelson
Rodrigues.
Começa
que a dramaturgia brasileira não é feita apenas de Nelson
Rodrigues. Vale sempre lembrar, por exemplo, que muito antes de
Nelson Rodrigues, Oswald de Andrade já tinha inaugurado uma
teatrologia radicalmente transgressora. Quer dizer: Nelson Rodrigues
é a parte e não o todo quando se fala de qualquer arte brasileira.
Não citá-lo não significa ser carente de brasilidade. E o fato de
que “Abismo Prateado” é livremente inspirado na canção de
Chico Buarque de Holanda, é o que? Sabemos todos que, além de
representar um ponto alto de nossa canção popular, Chico Buarque é
um poeta que pode ser colocado ao lado de outros poetas populares
como Noel Rosa.
Além
disso, como apontar caretice num cineasta que inicia sua trajetória
filmando uma personagem como “Madame Satã”? O filme de Karim
consegue superar a limitação das definições presentes nos
pareceres criminológicos sobre João Francisco dos Santos e levar ao
cinema aquilo que historiadores mais atentos já deveriam saber: que
se tratava de um personagem carregado de papéis e representações:
malandro carioca, homossexual, negro, artista, pobre. Contraventor de
certas leis é apenas uma de suas facetas. É a carga de todas que o
torna um personagem denso e contraditório talentosamente
representado no filme. Num país onde a possibilidade de um “beijo
gay” ainda serve de alavanca para audiência, não é qualquer
coisa ter filmado o sexo entre dois homens como o fez Karim e sua
equipe.
E “O
Céu de Suely”, o filme que traz Hermila Guedes no papel principal,
seria um filme de olhar conservador? Onde está a caretice num
roteiro que apresenta uma mãe solteira, obrigada a voltar para o
Nordeste na casa da avó, e que, cansada de esperar pelo amparo do
pai da criança, decide rifar o próprio corpo para uma noite de sexo
com o vencedor, afim de arrecadar o dinheiro que lhe permita viajar
para o lugar mais longe dali, onde possa refazer sua vida?
Personagens como Suely, quando aparecem, costumam ser construídas
apenas de modo a ressaltar uma noção de vulgaridade, a ignorância,
a ausência de um universo afetivo tão complexo como o de qualquer
outra pessoa. No lugar disso, Karim abre um céu de possibilidades,
reencontrando sua personagem com o sonho.
No
“Abismo Prateado” alguns detalhes compõem as sutilezas do Brasil
atual (mesmo não contendo nenhum argumento sociológico): a primeira
amiga a que Violeta (vivida por Alessandra Negrini) recorre é uma mulher, uma chefe de obras de uma
grande construção; o Rio de Janeiro, junto com suas praias é
filmado com suas avenidas cheias que espremem e atropelam os
ciclistas; um homem que é ao mesmo tempo pintor de paredes, cantor e
vendedor de biscoitos, tem a guarda da filha e mora provisóriamente
numa vã, enquanto viaja de volta para o Norte com o intuito de criar
a menina próxima da família. Numa dada cena, é a primeira vez que
pisam num aeroporto.
Eu tenho
podido acompanhar o cinema de Karim Aïnouz desde seu aparecimento.
De fato, é uma obra que se abre às possibilidades e capaz mesmo de
levar em conta o desejo do que ainda não existe. E, até agora,
profundamente ligada às coisas deste Brasil. Perto de encerrar,
lembro-me que um programa especial de Chico Buarque carrega o título
de “O país da delicadeza perdida”.
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