sábado, 27 de abril de 2013

O cinema da delicadeza perdida


      “O abismo prateado”, filme do brasileiro Karim Aïnouz, é delicado. No contexto de um cinema que se vê às voltas com enredos excepcionais, observar o dia que segue ao abandono pelo homem amado na vida de uma dentista pode parecer normal demais para alguns. Há dez anos, uma das maiores bilheterias das salas brasileiras foi “Carandiru”, de Hector Babenco, filme que dispensa apresentações. Tivemos ainda “Cidade de Deus”. O Capitão Nascimento de “Tropa de Elite” tornou-se um herói popular em sua época. O Brasil deve a si mesmo a verdade sobre os anos de regime autoritário, o que faz surgirem filmes necessários sobre este período. A desigualdade social, a miséria urbana, enfim, contradições reais praticamente se impõem como temas naturais aos nossos diretores. Mesmo nossos personagens marginais costumam ser espetaculares, vide os filmes de Cláudio Assis, a começar pelo último, “Febre do rato”. Quando não, são vidas reais, memoráveis e merecidamente homenageadas como Tom Jobim, Gonzagão e tantos outros. Como reconhecer importância num filme centrado numa protagonista que é uma mulher de classe média, uma dentista largada pelo marido?
      A primeira resposta que me ocorre é que o cinema que tem se ocupado de personagens e situações cotidianas tem sido aquele que deriva quase que diretamente das novelas de televisão: mesmos diretores, mesmo elenco e, infelizmente, a mesma linguagem. Ou seja: os personagens comuns geralmente tem merecido um tratamento baseado em lugares comuns. E são duas coisas que não precisariam se confundir. Seja na comédia, seja no drama, o que encontramos é o estereótipo, o clichê e o preconceito. O avesso da poesia e da delicadeza. Karim Aïnouz experimenta neste, como em outros filmes, a potência de situações ou desejos simples em princípio.
      Mas outra diferença talvez seja que o rumo tomado por esta simplicidade não é aquele dos capítulos sobre perversões, seja dos tratados de psiquiatria, seja da dramaturgia de um Nelson Rodrigues. E esta parte do meu comentário talvez soe ligeiramente panfletária em favor do filme de Karim Aïnouz, o que decididamente não me preocupa. Acontece que fiquei um pouco surpreso e incomodado, ao ler uma reportagem sobre a pré-estreia do filme, com uma crítica que teria afirmado tratar-se de um filme conservador e carente de brasilidade, justamente por não explorar o sexo e os afetos ao gosto de um Nelson Rodrigues.
      Começa que a dramaturgia brasileira não é feita apenas de Nelson Rodrigues. Vale sempre lembrar, por exemplo, que muito antes de Nelson Rodrigues, Oswald de Andrade já tinha inaugurado uma teatrologia radicalmente transgressora. Quer dizer: Nelson Rodrigues é a parte e não o todo quando se fala de qualquer arte brasileira. Não citá-lo não significa ser carente de brasilidade. E o fato de que “Abismo Prateado” é livremente inspirado na canção de Chico Buarque de Holanda, é o que? Sabemos todos que, além de representar um ponto alto de nossa canção popular, Chico Buarque é um poeta que pode ser colocado ao lado de outros poetas populares como Noel Rosa.
       Além disso, como apontar caretice num cineasta que inicia sua trajetória filmando uma personagem como “Madame Satã”? O filme de Karim consegue superar a limitação das definições presentes nos pareceres criminológicos sobre João Francisco dos Santos e levar ao cinema aquilo que historiadores mais atentos já deveriam saber: que se tratava de um personagem carregado de papéis e representações: malandro carioca, homossexual, negro, artista, pobre. Contraventor de certas leis é apenas uma de suas facetas. É a carga de todas que o torna um personagem denso e contraditório talentosamente representado no filme. Num país onde a possibilidade de um “beijo gay” ainda serve de alavanca para audiência, não é qualquer coisa ter filmado o sexo entre dois homens como o fez Karim e sua equipe.
      E “O Céu de Suely”, o filme que traz Hermila Guedes no papel principal, seria um filme de olhar conservador? Onde está a caretice num roteiro que apresenta uma mãe solteira, obrigada a voltar para o Nordeste na casa da avó, e que, cansada de esperar pelo amparo do pai da criança, decide rifar o próprio corpo para uma noite de sexo com o vencedor, afim de arrecadar o dinheiro que lhe permita viajar para o lugar mais longe dali, onde possa refazer sua vida? Personagens como Suely, quando aparecem, costumam ser construídas apenas de modo a ressaltar uma noção de vulgaridade, a ignorância, a ausência de um universo afetivo tão complexo como o de qualquer outra pessoa. No lugar disso, Karim abre um céu de possibilidades, reencontrando sua personagem com o sonho.
      No “Abismo Prateado” alguns detalhes compõem as sutilezas do Brasil atual (mesmo não contendo nenhum argumento sociológico): a primeira amiga a que Violeta (vivida por Alessandra Negrini) recorre é uma mulher, uma chefe de obras de uma grande construção; o Rio de Janeiro, junto com suas praias é filmado com suas avenidas cheias que espremem e atropelam os ciclistas; um homem que é ao mesmo tempo pintor de paredes, cantor e vendedor de biscoitos, tem a guarda da filha e mora provisóriamente numa vã, enquanto viaja de volta para o Norte com o intuito de criar a menina próxima da família. Numa dada cena, é a primeira vez que pisam num aeroporto.
      Eu tenho podido acompanhar o cinema de Karim Aïnouz desde seu aparecimento. De fato, é uma obra que se abre às possibilidades e capaz mesmo de levar em conta o desejo do que ainda não existe. E, até agora, profundamente ligada às coisas deste Brasil. Perto de encerrar, lembro-me que um programa especial de Chico Buarque carrega o título de “O país da delicadeza perdida”.  



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