Uma
noite de sábado em São Paulo, caminho pela cidade repleta de shows.
É mais uma edição de Virada Cultural, que todos já conhecem,
elogiam e criticam, mas tem, sem dúvida, como uma de suas grandes
qualidades criar a ocasião para que as pessoas passem pelas ruas
pelas quais passam todos os dias, mas sem a correria afoita do
cotidiano paulistano. Cria condição para que essas pessoas deixem
seu devir de baratas encurraladas para passearem, sem mais. Por isso,
algumas partes do trânsito até restringem a passagem de veículos:
para que os pedestres possam passear livremente.
Estou eu
no meio dessa multidão e eis que me deparo com uma exceção dessa
noite de boa convivência: um motorista que, com seu pequeno Mercedes-Benz, desrespeita a sinalização, ultrapassa o sinal fechado e passa
por cima da faixa de pedestres (cheia de pedestres, vejam só que
coincidência!). Quase me atropela, quase nos atropela. Reajo com
espanto. E o tal motorista, bem consciente da merda que acabou de
fazer, olha pela da janela de seu carro, faz uma expressão angelical
com direito a biquinho e pede desculpas com vozinha mansa. Eu diria
que este é o melhor exemplo do escroto-fofo que parece ser um tipo
específico desta nossa época. Ou seja, uma figura que está
tornando-se típica.
Explico?
Escrota
é aquela pessoa que não costuma respeitar nada nem ninguém e que
costuma achar-se plena de razão em seu desrespeito. Acontece que,
até bem pouco tempo, a figura que poderia representar o típico
escroto era o bad boy, o sujeito mal encarado, que procura
imprimir em seu semblante os traços de sua conduta. Seria assim um
escroto franco, que não se esconde, não finge ser outra coisa, que
não teme mostrar o que ele é. Não que esta figura esteja
desaparecendo, mas a cada dia ela divide mais a cena da escrotidão
com este outro tipo que tem ganhado mais evidência: o escroto-fofo.
O escroto-fofo desrespeita, mas faz cara de inocente na sequência de seus atos. É, como no exemplo, o cara que assume o risco de atropelar pessoas, mas faz ironicamente uma expressão de bom moço diante de qualquer reação em contrário. Essa figura também me faz pensar nos ditos humoristas que criam roteiros totalmente baseados no potencial ofensivo a um certo Outro (possivelmente já estigmatizado), tentam emplacar tais roteiros como se fossem boas histórias, boas piadas, e, ao primeiro sinal de rejeição, queixam de que “hoje em dia o público está chato demais e não sabe mais aceitar boas piadas”. Sim, parece que este escroto-fofo sonha com o dia em que teria uma aceitação total de seus pensamentos e ações. Ele sequer manifesta-se como um sujeito avesso às regras, ele quer ser cool, ele quer ser do bem, ele quer fazer a velha piada racista e, se preciso, defender-se dizendo que as pessoas estão levando as piadas muito a sério hoje em dia, que, afinal a tal palavra racista não passou de uma inocente piada. E caso alguém exerça seu direito de acusar o racismo explícito, o escroto-fofo engrossará o coro daqueles que dizem que atualmente o Brasil vive uma nova e tenebrosa era de censura. O escroto-fofo faz biquinho e entoa uma voz vitimizadora em nome da liberdade de expressão: “poxa, quais o limites do humor?”. O escroto-fofo é também aquele que se vale do lugar comum que é botar a culpa na onda politicamente correta do presente. Mas ele próprio não se assume como um “politicamente incorreto”, pelo contrário, ele utiliza todos os supostos argumentos politicamente corretos em sua defesa. Diferente daqueles que criticam o cerceamento politicamente correto porque acreditam ser possível estar além desta necessidade, o escroto-fofo faz uma crítica hipócrita, já que busca guarida na retórica de bom moço e nega as intenções expressas em suas condutas. Ele quer ser só um rapaz bem educado, que nunca venha a decepcionar sua querida mãe, jamais perder a admiração de sua família, o apoio de todos.
Curiosamente,
costuma ser ainda um sujeito que reage violentamente caso seja alvo
de ações e palavras semelhantes às que ele próprio cultiva.
Estou de
acordo com um pequeno artigo do colunista Marcelo Coelho que circulou
pelos jornais há exatos dois anos: a afirmação que encontrávamos
ali era a de que o sujeito com essas características que aparecem
aqui é, na verdade, um sujeito politicamente fascista. Mas como
assumir o ser fascista é algo que nem todos os fascistas estão
dispostos a fazer, o texto de Marcelo Coelho apontava a contradição
deste não-ser:
“O problema é que "politicamente incorreto", na verdade, é um rótulo enganoso. Quem diz essas coisas não é, para falar com todas as letras, "politicamente incorreto". Quem diz essas coisas é politicamente fascista. Só que a palavra "fascista", hoje em dia, virou um termo... politicamente incorreto. Chegamos a um paradoxo, a uma contradição. O rótulo "politicamente incorreto" acaba sendo uma forma eufemística, bem-educada e aceitável (isto é, "politicamente correta") de se dizer reacionário, direitista, fascistoide”.
Ou,
ainda, para ficarmos com o pensamento de Fellini, que pode muito bem
ser colocado no aqui-agora do nosso mundo:
“Uma grande ignorância e uma grande confusão. Não que eu queira minimizar as causas econômicas e sociais do Fascismo. Eu apenas quero dizer que hoje o que ainda é mais interessante é a forma psicológica, emocional de ser um Fascista... É uma espécie de bloqueio, um desenvolvimento suspenso durante a fase da adolescência. (...) Para dizer de outro modo, eu tenho a impressão de que Fascismo e adolescência continuam a ser, em certa medida, fases permanentes de nossas vidas: adolescência de nossas vidas individuais, Fascismo de nossa vida nacional”
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