Li, na manhã de hoje, o depoimento de Lúcia Murat à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, prestado ontem, transcrito e publicado pela redação de jornalismo do site A Tarde. Acredito que, seja lá qual for o resultado possível que estas comissões venham a obter, há algo que já está ao alcance de todos que é nos apropriarmos destes fragmentos que compõem o quadro dos anos de regime autoritário.
Esse tema exige o aprofundamento e a densidade expostos no depoimento de Lúcia. Recentemente, a imprensa nacional passou a noticiar o primeiro ano de trabalho dessas comissões e, sobretudo, da Comissão Nacional, com um certo tom de cansaço, como se já fosse possível dar o assunto por encerrado. Demonstrar cansaço com este assunto é o mesmo que demonstrar cansaço com a democracia. É o não aprofundamento e o tratamento superficial que permite vozes que negam a existência da tortura como política estatal, que reacendem os argumentos de que a resistência ao regime não passava de um grupo de terroristas e de que a própria presidenta da república não teria autoridade para ter instaurado a CNV, é o desconhecimento que permite que vozes assim tentem se proliferar.
Segue o depoimento.
"A minha primeira prisão foi no Congresso estudantil em Ibiúna em outubro de 1968. Eu era vice-presidente do diretório estudantil da faculdade de economia e estava no congresso representando a minha faculdade. Fiquei cerca de uma semana na prisão e não fui torturada. Antes do Ato Institucional número 5, em 13 de dezembro de 1968, os estudantes de classe média não eram torturados, mas o mesmo não acontecia com os operários. Dois anos mais tarde encontrei e militei com Jose Barreto, assassinado junto com Carlos Lamarca, e ele me contou das torturas que sofreu em 1968, quando foi preso por ter estado no comando da Greve de Osasco.
Por ter sido presa no Congresso de Ibiúna, eu entrei na clandestinidade lodo depois do Ato Institucional numero 5, pois sabíamos que com o fim do habeas corpus e dos direitos que ainda existiam os militares iriam me perseguir em algum momento.
E, efetivamente, alguns meses mais tarde quando da chamada Operação Rockefeller, mais de 10 mil pessoas foram presas numa tentativa de preservar o país de qualquer manifestação contra a chegada de Nelson Rockefeller , então governador de Nova York. Nessa ocasião, a casa dos meus pais foi invadida por militares armados. E, meu pai, Dr Miguel Vasconcellos, então diretor do Hospital Pedro Ernesto no Rio de Janeiro, foi preso e levado para um quartel onde o interrogaram sobre a minha localização, a qual ele desconhecia. Com ele, foi levada minha irmã Regina Murat Vasconcellos. Eles foram soltos, depois de ameaçados.
A minha segunda prisão se dá então em 31 de março de 1971, depois de dois anos e meio de clandestinidade.
A tortura era uma prática da ditadura e nós sabíamos disso pelo relato dos que tinham sido presos antes. Mas nenhuma descrição seria comparável ao que eu vim a enfrentar. Não porque tenha sido mais torturada do que os outros. Mas porque o horror é indescritível.
Sabendo dessa impossibilidade, vou tentar descrevê-lo.