Eu senti
saudade da leitura de Michel Foucault por esses dias. O pensamento de
Foucault, indissociável de seu estilo provocador, foi o que mais
deixou marcas em minha própria formação. Ao ler um livro de
Foucault, vamos tendo a sensação de que é um ato de coragem que se
apresenta para nós, leitores.
O início
desse contato, seria inútil eu tentar reconstituí-lo detalhadamente
agora. Mas essa sensação que acabo de dizer, óbviamente, não se
deu imediatamente. As primeiras leituras foram de segunda mão:
estudos de diversos campos que encontravam no filósofo francês um
modo diferente de falar sobre relações de poder, sobre a noção de
verdade, sobre o sexo e a sexualidade.
Depois,
veio a leitura de alguns trabalhos que não apenas utilizavam
Foucault como uma ferramenta eventual, mas que se explicitavam como
trabalhos foucaultianos, que de alguma maneira buscavam acompanhar
seus rastros. Foi então que eu decidi, isso devia ser ainda no
início de minha graduação, ler o primeiro volume de sua História
da Sexualidade. Quero dizer: foi a primeira obra de Foucault que
decidi ler por conta própria, sem que constasse das exigências de
nenhuma obrigação acadêmica. Leitura que mais tarde eu refiz,
desta vez num contexto mais institucionalizado, onde havia outros
colegas que trabalhavam valendo-se de ideias foucaultianas. Mas neste
momento anterior, foi uma leitura solitária. Para admiração de
alguns e como pólvora para o desdém de outros, Foucault nos legou
uma escrita bela. Desdém que podemos tomar conhecimento em críticas
a seus trabalhos que veem neles um beletrismo que seria o sinal
apenas de uma verborragia que não diz nada de novo. Qualquer um que
se deu ao trabalho de ler Foucault, sabe que não está diante
“apenas” de uma escrita bela, mas que se trata de uma obra
consistente. Mas para aqueles que, além da inconsistência de
ideias, não foram capazes de explorar as potencialidades da
linguagem escrita, resta ainda a possibilidade de apontar para a bem
trabalhada escrita de Foucault como a prova de que ela não passa
disso: uma escrita bem trabalhada.
De minha
parte, estou entre aqueles que sempre se admiram da escrita de
Foucault.
Já
havia tido contato, sem nenhuma sistematização, com algumas
entrevistas do filósofo. O que também deixou marcas que viriam se
conectar a outras. Como se sabe, a maior parte dessas entrevistas
contém reflexões importantes, não só esclarecimentos sobre as
obras publicadas mas apontamentos interessantes, que se tornaram
fonte de investigação para novas gerações de estudiosos. Os
cursos do Collège de France, com suas qualidades de apresentarem
pesquisas originais ao mesmo tempo que dão acesso a um pensamento em
movimento permanente, já que se trata da transcrição das aulas,
foram leituras mais tardias. Aliás, as publicações deles foram
tardias em relação ao restante dos trabalhos, algumas traduções
tendo saído há pouco tempo no Brasil. Deles, a Hermenêutica do
Sujeito, foi o último curso que eu lí na íntegra. O texto é
bem acessível, o que não deve enganar: trata-se de empreendimento
ousado que se articula a outros cursos e que, se levados a sério,
tem o potencial não apenas de se tornar um marco na Filosofia
enquanto disciplina, mas também de produzir mudanças na relação
entre sujeito, conhecimento e espiritualidade.
No
contexto acadêmico, uma certa atitude me pareceu muito estranha: uma
segmentação e um isolamento do pensamento que se apresentavam como
dados da realidade. De modo que não era difícil ouvir algo assim:
“se quiser estudar sexo, leia Foucault”. De fato, ao comentar o
quanto havia me interessado pela leitura de Vigiar e Punir,
uma vez eu ouvi a seguinte resposta de estranhamento: “Ah! Mas eu
pensei que você só gostasse do Foucault da sexualidade”. Não é
preciso ser nenhum Michel Foucault para se dar conta que este tipo de
enquadramento é empobrecedor.
A obra
de Foucault, embora tenha sim um caráter original, não é fechada
sobre si mesma. Sem querer realizar a tarefa impossível de, num
breve comentário como este, fazer o levantamento de todos os seus
diálogos, cito apenas que eles foram da teoria crítica à
psicanálise, passando pela arte, pela sociologia e pelo marxismo.
Não foi por um acaso que figuras como Louis Althusser e Nico
Poulantzas se ocuparam da leitura e da crítica ao trabalho de
Foucault.
Tudo
isso é componente daquela saudade que mencionei acima. Mas ao invés
de pegar a saudade e me debruçar sobre algum texto já conhecido,
busquei algo que eu ainda não tinha travado contato direto. Sabia
que o primeiro trabalho de Foucault já problematizava o conhecimento
sobre a loucura, que se esboçava ali a questão do saber que se
adensou com estudos feitos na sequência, mas nunca tinha sentado
para ler Doença Mental e Psicologia.
Este
texto de 1954, que ganhou nova edição (é bem possível que tenha
sido uma edição “correta e diminuída” como agradava a Mario
Quintana), surpreende por vários motivos. O filósofo que naquela
altura tinha por volta de vinte e oito anos parece saber exatamente o
que está fazendo. Embora, de partida, o texto já coloque sob
suspeita o fato de doenças orgânicas e doenças mentais
encontrarem-se sob as mesmas definições de patologia, esse
movimento inicial tem um estilo aparentemente sufocante: vai-se
descrevendo uma a uma as fases e categorias de doença mental, todos
os déficits da personalidade doente, que as diversas psicologias
conseguiram produzir até então. Até que um outro movimento nos
coloca diante de um estilo cortante: é como se Foucault chamasse a
psicologia a uma humildade que normalmente não lhe é própria e
demonstrasse que estas categorias que se pretendem totalizantes em
suas descrições são, em verdade, insuficientes. Insuficientes para
entender como a personalidade do doente mental se estrutura, a
despeito dos déficits; e insuficientes para determinar a própria
origem da doença. Vemos este movimento do pensamento ganhar força
em considerações como a seguinte, referindo-se à noção de
evolução e regressão nas psicologias:
“No horizonte de todas estas análises, há, sem dúvida, temas
explicativos que se situam por si mesmos nas fronteiras do mito: o
mito, inicialmente, de uma certa substância psicológica ("libido",
em Freud, "força psíquica", em Janet), que seria a
matéria bruta da evolução, e que, progredindo no decorrer, do
desenvolvimento individual e social,sofreria uma espécie de recaída,
e voltaria, devido a doença, a seu estado anterior; o mito também
de uma identidade entre o doente, o primitivo e a criança, mito
através do qual se tranqüiliza a consciência escandalizada diante
da doença mental, e consolida-se a consciência presa a seus
preconceitos culturais. Destes dois mitos, o primeiro, porque
científico, logo abandonado (de Janet, retém-se a análise das
condutas, e não a interpretação pela força psicológica: os
psicanalistas rejeitam cada vez mais a noção bio-psicológica de
libido); o outro, pelo contrário, ético, porque justifica mais do
que explica, permanece vivo ainda” (Foucault, 1975, p. 23)
Além
dessa análise crítica, chama a atenção que um estudioso de vinte
e oito anos já tivesse um domínio tão consistente das diversas
psicologias e da psicanálise, em especial. E na primeira parte dete
trabalho, a que é dedicada às dimensões psicológicas da doença
mental, é isso que Foucault demonstra. Por exemplo, no domínio que
ele expressa do movimento que há no interior da obra de Freud que o
levou de uma teorização biológica do psiquismo, marcada pela
admiração a Darwin e expressa no problema do instinto, para uma
inflexão sobre a história individual do doente, originando a teoria
sobre o inconsciente e passando a problematizar a noção de
angústia, este sentimento que se encontra no cerne do conflito e com
o qual a psicanálise irá se desenvolver.
Quando
digo que chama a atenção este domínio quero dizer que chama a
atenção pelo fato de que ele estava certo em sua ousadia. Não sou
psicanalista, mas realizei algumas leituras que me permitem
reconhecer esta característica deste trabalho de Foucault. Cito
duas recentes: a primeira, do historiador Christopher Lasch, para quem os
conceitos psicanalíticos são ferramentas para pensar as formações
históricas da subjetividade no século XX, em especial no período
pós segunda guerra mundial. Importam para Lasch as teorizações
freudianas sobre o eu e, sobretudo, a reflexão sobre o
narcisismo e sua dimensão cultural.A segunda consiste no livro mais
recente da psicanalista Maria Rita Kehl, O tempo e o cão, no
qual se procura definir o status da depressão no interior da
psicanálise. Justamente por perceber que o conceito de melancolia
sofreu uma inflexão a partir do trabalho de Freud e que o conceito
de distúrbios maníaco-depressivos ficou a cargo das definições
cada vez mais imprecisas da psiquiatria, Kehl procura reposicionar a
questão da depressão no interior da psicanálise. Para isso, a
psicanalista alia qualidades que lhe permitem mirar no horizonte a
subjetividade de nossa época: conhecimento histórico, diálogos
importantes com a filosofia e com a teoria social, em especial um
cuidado com o problema do tempo e da experiência a partir de Walter
Benjamin, tudo isso somado a uma formação consistente da teoria
psicanalítica. Ainda que critique o modo pelo qual a análise de
Freud restringiu algumas questões ao domínio da vida privada,
praticamente negligenciando a questão do laço social, é na
gramática freudiana que seu trabalho se desenvolve. E se desenvolve
buscando explicitar a diferença entre a melancolia e a depressão,
demonstrando que o lugar da depressão nas estruturas da
personalidade doente é entre as neuroses, mas um lugar anterior
àquele que tradicionalmente se conhece. E é de forma cuidadosa que
Kehl vai posicionando as inflexões na obra de Freud: o conceito
biológico de libido e, posteriormente, a análise da angustia e dos
mecanismos de defesa. Enfim, um trabalho de maturidade que, para
avançar, busca salvaguardar a teoria psicanalítica.
Não se
pode afirmar que Foucault busque, ao contrário, invalidar a
psicanálise. Mas também não é próprio de seu trabalho a busca de
salvaguardas para ela, já que não é nela que ele avança. E por
não ter esta relação de filiação com a teoria psicanalítica é
que se destaca a consistência de sua leitura da psicanálise. Uma
leitura que, como acabo de comparar, exige cuidado e precisão desde
que se pretenda bem sucedida. E que exige ainda mais quando se coloca
no campo da crítica, desde que esta crítica queira-se como
consequente. Este trabalho inicial de Foucault já deixa claro uma
capacidade de criar um ponto de vista alternativo aos problemas que
se propõe, e criar de modo consistente. Lembro, por fim, que neste
Doença Mental e Psicologia o que está em questão não é
apenas a psicanálise, que é colocada em parte do trabalho. Apenas
fiz estes parênteses com a psicanálise para destacar o compromisso
de Foucault com uma análise crítica e histórica. Uma análise
capaz de direcionar o problema não mais de uma suposta loucura que
nada sabe sobre si mesma mas da relação de uma sociedade com a
razão e com a desrazão. Problema amplo que abarca também as
diversas psicologias e a medicina psiquiátrica. E muito além.
Encerro este comentário deixando as últimas palavras desta
interessante obra:
“Há
uma boa razão para que a psicologia não possa jamais dominar a
loucura; é que ela só foi possível no nosso mundo uma vez a
loucura dominada e já excluída do drama. E quando, através de
clarões e gritos, ela reaparece como em Nerval ou Artaud, em
Nietzsche ou Roussel, é a psicologia que se cala e permanece sem
palavras diante desta linguagem que toma o sentido das suas palavras
desta dilaceração trágica e desta liberdade de que somente a
existência dos "psicólogos" sanciona para o homem
contemporâneo o pesado esquecimento” (Idem, p. 68).
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