sábado, 8 de junho de 2013

Semelhantes e diferentes

      Uma sessão de cinema dupla: Vestido de Laerte (Claudia Priscilla e Pedro Marques, 2012)e Olhe para mim de novo (Claudia Priscilla e Kiko Goifman,2011). A exibição destes dois filmes conjuntamente não é aleatória. Ambos ostentam personagens que trazem a experiência de gênero para o primeiro plano, e de forma talvez desconcertante. E, muito embora o primeiro seja um curta metragem e o segundo uma espécie de documentário road movie, o diálogo possível entre os dois não deixa Vestido de Laerte em nenhuma desvantagem.

    Talvez Laerte Coutinho já dispense apresentações, mesmo quando o assunto não seja a carreira do quadrinista, mas sim a experiência como transgênero. Desde que passou a viver publicamente uma identidade feminina, Laerte tem provocado algumas discussões entre pessoas que, comumente, não dedicam muito tempo de suas vidas a refletir sobre os significados do gênero, do ser travesti, do ser transexual. E mesmo do ser homem e ser mulher, diga-se de passagem. Para inquietação dos caretas, Laerte tem a oferecer um discurso muito bem formulado, digamos assim, bastante razoável sobre essas questões. Por exemplo, ao afirmar que a questão do vestuário impõe-se de forma muito mais rígida para os homens, justamente porque as mulheres, há algumas décadas, foram protagonistas de uma “conquista do vestuário”. Ou seja, elas, ao adotarem peças de roupa, cortes de cabelo (e mesmo formas de conduta exigidas no espaço público, eu acrescentaria) até então tidos como masculinos, conquistaram, ao menos para as mulheres, modos mais plurais para essas expressões aparentes do gênero. Uma mulher de calça é uma mulher de calça. Um homem de saia ainda é visto como um homem vestido de mulher.
      Embora o que salte aos olhos, no caso de Laerte, seja a opção pelo feminino, o caminho para o qual Laerte aponta não me parece ser, simplesmente, o do “isso ou aquilo”. A graça de Laerte é estar na linha de uma afirmação pouco explorada em nossa sociedade: a de que uma expansão das possibilidades de experienciar o gênero tende a colocar em questão a importância de uma linha divisória tão excludente entre o feminino e o masculino.
      Nesse sentido, a outra história, a de Syllvio Luccio de Olhe para mim de novo, reserva diferenças importantes. Syllvio Luccio “nasceu mulher, tornou-se lésbica e agora é homem”. Vive essa experiência no contexto de um sertão nordestino que preza muito o valor da virilidade como algo que é central para os homens. A esse aspecto tradicional soma-se a forte presença das igrejas evangélicas nas classes populares, inclusive, sendo esta a confissão religiosa da filha
de Syllvio (filha que Syllvio teve antes de tornar-se trans e que ofereceu à própria mãe como se estivesse recompensando a filha-mulher que ele não foi). É verdade que Syllvio politizou-se, tem consciência de sua militância, busca informações e não se furta aos enfrentamentos que as fronteiras de gênero impõem para uma pessoa como ele. Mas nenhuma ação acontece fora de seu contexto. E é perceptível que, mesmo questionando em parte o tradicionalismo, a experiência de Syllvio está de acordo com esse mesmo tradicionalismo em outros aspectos. Tudo o que diz respeito àquilo que ele viveu como feminilidade é revestida de grande sofrimento. Não necessariamente porque a coisa narrada seja violenta ou dolorosa em si mesma, mas por carregar aquela percepção do feminino como algo vergonhoso, da ordem do mal, da culpa. Tanto que chama a atenção duas atitudes opostas que Syllvio tem em relação à genitália. Ele conta sobre suas idas ao ginecologista de forma dramática, afirmando que, para qualquer mulher, mostrar a vagina é sempre algo vergonhoso e para ele, que já faz uso de hormônios masculinos, essa vergonha é ainda maior. A oposição vem quando Syllvio conta de sua relação com a prótese de órgão masculino. Aqui, a vergonha diante do sexo desaparece. Syllvio brinca, coçando a genitália, exibindo-a, oferecendo-a ao toque de colegas curiosos. Não sai de casa sem ela em qualquer ocasião. É motivo de orgulho. Syllvio também ressalta o seu desejo por mulheres como um desejo de posse e a conquista como uma atitude masculina.
      Ainda assim, não é simplesmente classificável a experiência de Syllvio. Nela convivem reforços das concepções tradicionais de gênero e questionamentos dessas mesmas concepções, dependendo do que está em jogo. A lógica do ser isso ou aquilo convive com a lógica do ser isso e aquilo.
      Os dois filmes expõem que este terreno das fronteiras ainda é um terreno de luta política. Mas muito menos cerceado pelo tradicionalismo, com uma aceitação melhor resolvida por parte de seus familiares, protegido pelo reconhecimento prévio de sua carreira e por uma exposição midiática favorável, Laerte pode levar esta política para campos menos dramáticos, mais próximos de uma experiência estética, mas que também almeja o espaço da ampliação de direitos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário