terça-feira, 18 de junho de 2013

É chato dizer...

  Há mais de um século, quando intelectuais tentavam definir o caráter do povo brasileiro, não faltaram figuras que apontassem para o desânimo fácil do brasileiro em relação às suas próprias (raras) iniciativas. Sílvio Romero deixou seu testemunho. Eis que numa segunda-feira de junho de 2013, quando a frase feita ganhou novo valor graças às hashtags, algo foi repetido aos milhares: “agora tudo vai mudar”, “o gigante acordou” e outras palavras. Algum desses intérpretes do Brasil atreveria-se a ver nesse movimento a nossa decantada tendência de “imitação ao estrangeiro”? Talvez. O que não seria toda a verdade. Afinal, há um verdadeiro enraizamento local (que não começou hoje) do Movimento Passe Livre no Brasil. Mas o fato é que, segundo declarações do próprio movimento em conversa com a imprensa, conta-se quarenta representantes do MPL na capital paulistana. E estima-se que os que foram às ruas protestar a partir do mote do aumento das tarifas de transporte, apenas em São Paulo, aproximam-se dos cem mil.
      O MPL vive um impasse. Ao mesmo tempo que quer defender sua pauta (com um tema bem direcionado) de interesses alheios que tentaram dar outra conotação aos protestos, reconhecem a impotência de quarenta representantes diante de uma mobilização popular que alcançou cem mil pessoas. Um dos jornalistas que interpelou dois dos representantes questionou se eles não estavam pretendendo ficar com o bônus sem arcar com o ônus das manifestações. Já durante o dia, os preparativos para o movimento davam a impressão de que o que viria a seguir seria uma grande panacéia. Não encontro expressão melhor para preparativos que animaram desde a militância de partidos como o PSTU até a personalidades como Arnaldo Jabor, convocando seus ouvintes da rádio CBN. Todos queriam uma manifestação de massa para chamar de sua.
Viu-se, nas manifestações, a presença de jovens que estariam fazendo seu debute na vida cívica. Na imprensa, da mais sensacionalista à mais pretensamente intelectualizada, a explicação era a de que, desde os caras pintadas, em 1992, os jovens brasileiros não encontravam oportunidade de ir às ruas expressar seus anseios. É um exagero. Não é verdade que nossa sociedade civil vive um sono de duas décadas. Mas aproveitando a comparação, vale lembrar que a manifestação nas ruas contra o presidente Collor foi só o corolário de um processo, digamos assim, subterrâneo. É sabido que o fim da presidência de Collor deveu-se ao isolamento político em que seu governo colocou-se em relação ao Congresso e não a qualquer clamor irresistível das ruas.
Apesar da insistência do MPL na manutenção da coerência com a origem do movimento, já não há como segurar as visões que estão enxergando de tudo e mais um pouco nos protestos de segunda-feira. Mais do que nunca, os partidos políticos encontram-se mal vistos pela sociedade: parece que nunca os políticos foram todos tão iguais. Assim, qualquer manifestação vista como “espontânea” é prontamente elogiada como mais natural, mais bonita mesmo. Apenas gente “do bem” numa manifestação limpa, não contaminada pela política tradicional. Embora as vozes que detestam “baderneiros” tenham-se mantido alertas para denunciar exceções.
Avatares com a máscara do personagem V de Vingança são facilmente vistos na internet acusando a velhice das interpretações do tipo direita versus esquerda, governo versus oposição. Defendem “algo muito maior”, já que “tudo vai mudar”. Mas há uma distância entre o que a máscara quer ver e aquilo que a realidade expressa. Os velhos partidos estão sim preocupados com essa nova mobilização popular. Partidos como o PSTU enfraqueceram-se nas últimas eleições federais e perderam representação no Congresso: querem voltar à cena e, para isso, precisam de adeptos. O PSOL, que cresceu mas continua nanico, quer sair da casa do 1% do eleitorado e também quer seu quinhão da mobilização popular. Aliás, quem observar alguns parlamentares do PSOL irá descobrir uma atuação muito mais disposta a contemporizar com a direita do que sinaliza a manifestação das ruas. O PT teme perder ainda mais terreno nos movimentos sociais. No auge do conflito entre manifestantes e polícia, o prefeito petista estava junto com o governador tucano em Paris, acompanhados do vice-presidente do PMDB: um retrato emblemático. Pegou mal para um PT que já é visto como um partido que, das causas sociais, mantém-se fiel apenas à do combate à pobreza e à desigualdade racial. A participação da Juventude do PT nas manifestações significa muito pouco nesse quadro mais geral em que o partido que governa o país encontra-se. Em nome da  governabilidade, o partido tem sido conivente com interesses conservadores e perdido simpatizantes. O PSDB sequer vai às ruas: a máxima de que a massa tucana distingue-se do restante do país por ser uma “massa cheirosa” custará a desaparecer de nossas memórias. Mas mesmo assim quer tirar proveito das mobilizações populares. Como contam com uma aliança estável com a imprensa nacional, os tucanos conseguem, sem sair de seus gabinetes, colar sua imagem à das manifestações: a foto de Aécio Neves estampada nos principais veículos de comunicação com uma fala singela sobre o sentimento que vem das ruas não é mera coincidência. Imagem que rivaliza com a do Palácio dos Bandeirantes, habitado pelos tucanos, um dos alvos principais dos manifestantes.
Ou seja: velha ou não, a lógica partidária é uma das grandes interessadas com os rumos da atual mobilização popular. Os que hoje estão dispostos a mobilizar-se não deveriam ignorar o poder que os partidos detém. Manifestantes têm toda a liberdade de dizer que uma saída às ruas “irá mudar tudo”. Mas mesmo a história recente tem valiosas lições nesse sentido: a parada organizada pelo movimento de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros tem quase duas décadas no Brasil. Em alguns anos já colocava seu primeiro milhão de manifestantes nas ruas. E, isso tudo, muito antes de ter-se imposto ao calendário das cidades, quando o que predominava não era exatamente o caráter festivo da manifestação. Como dizia uma amiga minha, numa época em que não era moda e que era preciso uma dose de coragem para manifestar-se numa parada desse tipo. Pois bem: quase duas décadas passadas e a pauta que diz respeito aos direitos GLBT não só não avançou como ainda corre o risco de sofrer fortes retrocessos. Os setores sociais que apoiam o movimento e a própria população GLBT não dão a devida importância à lógica partidária? Talvez. Em contraposição, setores religiosos demonstram uma articulação política cada vez maior: presidem a Comissão de Direitos Humanos da Câmara, pautam o Estatuto do Nascituro e defendem um projeto que permite às Igrejas entrarem no Supremo Tribunal Federal com ações diretas de inconstitucionalidade, para ficar com apenas alguns exemplos. Se, daqui a um ano, a bancada religiosa no Congresso Nacional for ainda maior do que é hoje, ninguém poderá espantar-se dizendo: “mas como foi possível isso acontecer?”. São setores que trabalham diariamente com este objetivo. Um evento organizado recentemente em Brasília pelos evangélicos atacou a tudo e a todos: cobram uma complacência ainda maior do governo federal diante da retirada de direitos, criticam a atuação do Judiciário por reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo e elogiam o “Manifesto do Nada na Terra do Nunca”! Dão repercussão a todos estes apelos em rede nacional de televisão, já que, diante da ausência de regulamentação constitucional, as empresas de comunicação seguem desrespeitando as concessões públicas e vendendo grande parte de seus horários para as igrejas. Querem interferir aqui e no além, pairando acima dos direitos constitucionais. Se passassem, em rede nacional de televisão, as mesmas mensagens que as igrejas evangélicas têm passado, os partidos políticos seriam penalizados (afinal, existe legislação que limita sua atuação). Com tais igrejas nada acontece no sentido de assumirem responsabilidades legais. Atuam partidariamente, mas não são partidos. Ocupam o horário nobre nas telecomunicações, mas não são imprensa. E sobretudo: têm uma atuação política em todos os espaços, seja ela nos vagões dos trens, seja ela no Congresso Nacional. 
É chato dizer isso quando as manifestações ainda brilham em nossos olhos, mas as ruas sozinhas não irão mudar tudo.

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